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São Paulo, quinta-feira, 02 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A Alca depois de Cancún

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Depois do fiasco da reunião da OMC em Cancún, os EUA intensificaram as pressões na Alca. O Brasil é o principal alvo. O objetivo é vencer as resistências à Alca tal como originalmente concebida.
Nas últimas semanas, Washington subiu o tom em uma série de agressivos artigos, discursos e entrevistas dos seus principais negociadores na área do comércio exterior. No Brasil, naturalmente, já há quem queira correr para baixo da cama.
O governo dos EUA nem disfarça as suas tentativas de isolar o Brasil e, se possível, dividir o Mercosul. Aproveita-se de um erro cometido recentemente pelo presidente brasileiro, que se omitiu de maneira constrangedora quando a Argentina (com o apoio dos EUA...) entrou em choque com o FMI e chegou a suspender o pagamento de uma dívida àquele organismo.
Em novembro, teremos em Miami a reunião ministerial que estabelecerá a agenda para a etapa final da negociação da Alca, em 2004. Aproxima-se, portanto, um momento importante, talvez decisivo.
O embaixador Ross Wilson, negociador-chefe dos Estados Unidos para a Alca, deixou claro que o seu governo continua comprometido com um acordo "ambicioso" e "abrangente" e com a conclusão das negociações no prazo previsto (janeiro de 2005). "Infelizmente", declarou Wilson, "a Organização Mundial do Comércio perdeu a oportunidade em Cancún de fazer avançar negociações globais -o hemisfério Ocidental não pode repetir o erro". Evidentemente, os EUA querem evitar que o fracasso em Cancún seja seguido de outro fracasso em Miami.
A reação do governo brasileiro a essas pressões dos EUA tem sido bastante adequada, pelo que se pode perceber. O embaixador Luiz Felipe Macedo Soares, chefe da delegação brasileira à reunião preparatória desta semana em Trinidad e Tobago, fez uma intervenção corajosa, cuja íntegra pode ser lida no site do Itamaraty (www.mre.gov.br, nota à imprensa nº 424, 30 de setembro de 2003). Macedo Soares considerou um exemplo de "retórica destrutiva" a divisão "maniqueísta" entre os países que "podem fazer" ("can-do countries") e aqueles que "não farão" ("won't-do countries") -uma alusão a artigo publicado logo após Cancún pelo ministro do Comércio Exterior dos EUA, Robert Zoellick, no jornal "Financial Times" em 22 de setembro (esse artigo está reproduzido em www.ustr.gov/ speech-test/zoellick).
No mesmo dia em que o embaixador brasileiro fazia a sua intervenção, Zoellick declarava à imprensa em Miami que, depois de Cancún, o seu colega argentino telefonou e ofereceu uma abordagem do tipo "can-do" para o livre comércio... ("The Miami Herald", 1º de outubro de 2003).
O ambiente está ficando carregado, portanto. O governo brasileiro não deseja a confrontação com os EUA. Mas não pode, por outro lado, se conformar com a agenda desequilibrada proposta insistentemente pelos EUA. Quando Washington diz que quer uma Alca "ambiciosa" e "abrangente", o que fica subentendido é o seguinte: a agenda não pode mudar.
Isso significa que temas do nosso interesse, como agricultura e legislação antidumping e anti-subsídios, continuariam fora da Alca e seriam remetidos para negociação na OMC. Ou seja: ficariam para as calendas gregas.
Já temas prioritários para os EUA e difíceis para o Brasil, como investimentos, serviços, propriedade intelectual e compras governamentais, seriam tratados, em detalhe, na Alca. Se essa abordagem prevalecer, o resultado será um tremendo esvaziamento da política econômica brasileira. É a conclusão a que se chega, inapelavelmente, quando se analisam os documentos oficiais da Alca e as propostas apresentadas pelos EUA, como procurei fazer em trabalho publicado na edição mais recente da revista do Instituto de Estudos Avançados da USP ("A Alca e o Brasil", "Estudos Avançados", vol. 17, nº 48, maio/agosto de 2003).
Das duas, uma: ou os Estados Unidos concordam em incluir os temas do nosso interesse na Alca ou aceitam excluir aqueles com os quais o Brasil tem dificuldades.
Se nenhuma das duas hipóteses é viável, vamos esquecer a Alca e cuidar de outros assuntos.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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