São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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ANÁLISE

Déficit dos EUA é sustentável e lógico

RICHARD COOPER
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

O déficit em conta corrente dos Estados Unidos -o excedente do que os americanos gastam em bens, serviços e fundos transferidos para o exterior sobre o que o país ganha do resto do mundo- hoje supera US$ 500 bilhões por ano, ou 5% do Produto Interno Bruto. Seu tamanho inédito permite que muitos países tenham superávits que de outra forma não seriam possíveis.
Tornou-se "sabedoria convencional", para usar o termo memorável de Kenneth Galbraith, acreditar que o déficit americano é insustentável, com a implicação de que, com mudanças de políticas ou de crises financeiras, ele deve decair significativamente.
Eu discordo. Para entender por quê, suponha que o déficit continue indefinidamente em US$ 500 bilhões e examine primeiro de uma perspectiva dos EUA e depois pela do restante do mundo.
Suponha, como é razoável, que a economia americana tem uma tendência de crescimento de 5% ao ano, mais de 3% em termos reais e 2% de inflação ou pouco menos. Um déficit em conta corrente significa que o mundo está investindo na economia americana, comprando todo tipo de bens - títulos, ações, e até dólares.
Quais são as implicações de nossas suposições de um déficit indefinido de US$ 500 bilhões por ano e 5% de crescimento? Se o déficit em conta corrente permanecer constante e o PIB crescer todo ano, a proporção entre os direitos externos líquidos e o PIB americano -uma proporção usada por muitos economistas para avaliar a sustentabilidade- aumentará até alcançar o pico de 46% depois de 15 a 16 anos, após os quais ela declinará indefinidamente.
Os estrangeiros terão então uma participação maior, de pouco menos de 20%, no estoque de capital físico da América (edifícios e equipamentos) que os direitos dos Estados Unidos no exterior, supondo que a propriedade seja toda direta. Mas a economia americana tem diversas camadas de bens financeiros, hoje avaliados em mais que o triplo do valor do estoque de capital, e crescendo. Isso significa que a propriedade de cerca de 20% do estoque de capital em termos líquidos vale menos que 10% do total dos bens financeiros dos Estados Unidos. O rendimento desses bens representaria direitos sobre a produção americana, reduzindo os rendimentos americanos relativos ao nível em que estariam se os americanos possuíssem mais desses direitos. No entanto, esses direitos quase certamente tornariam as rendas americanas maiores do que elas teriam sido se outros países tivessem investido menos na economia americana, dependendo do valor que os americanos teriam investido na ausência de investimento estrangeiro.
O atual déficit em conta corrente, enquanto por nossas suposições é constante em termos de dólares, cairá constantemente como parcela do PIB (em constante crescimento), atingindo 2,2% em 2018, quando a proporção entre direitos e o PIB chegar ao pico. O déficit comercial, enquanto isso, precisaria diminuir conforme aumentam os ganhos dos estrangeiros em investimentos nos Estados Unidos. Essa trajetória parece insustentável? Embora seja possivelmente indesejável, não é insustentável. Essa tese é reforçada quando consideramos como o resto do mundo gera cerca de US$ 6 trilhões por ano em poupança. A maior parte dessa é investida localmente, mas o déficit em conta corrente dos Estados Unidos significa que parte dela também é investida nos país -pouco mais de 10% se admitirmos que os americanos também investem parte de sua poupança no exterior.

Retornos maiores
A economia americana responde por bem mais de um quarto da economia mundial, e cerca de metade de seus bens financeiros negociáveis. Além disso, ela oferece retornos maiores sobre investimentos reais do que a Europa ou o Japão, e oferece mais confiabilidade e segurança nesses retornos do que os mercados emergentes. É inconcebível, no mundo cada vez mais globalizado de hoje, que os poupadores queiram colocar de 10% a 15% de suas poupanças na economia americana, uma parcela que diminui com o tempo? O grande pool de poupança na China e na Índia, em rápido crescimento, ainda foi muito pouco utilizado, restringidos por controles cambiais. As oportunidades de investimento na economia americana seriam altamente atraentes para muitos chineses e indianos que enriqueceram recentemente. O Japão e a China lideraram os acumuladores de reservas em dólares, mas dezenas de outros países, incluindo a Índia, aumentaram significativamente suas reservas.
Seus motivos derivam puramente do desejo de inibir as valorizações da moeda que prejudicam as exportações. Essa não é uma estratégia tola.
Como os comentaristas notam freqüentemente, o constante déficit em conta corrente reflete uma deficiência de poupança nos EUA em relação aos investimentos no país. No entanto, também reflete um excesso de poupança no resto do mundo em relação aos investimentos no resto do mundo. Qualquer tentativa de reduzir abruptamente o déficit americano, que não seja por meio de um aumento espontâneo mas improvável no investimento doméstico em muitos outros países, sem dúvida produziria uma recessão mundial.


Richard Cooper é professor de economia na Universidade Harvard e ex-subsecretário de Assuntos Econômicos dos EUA.


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