São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Dólar corre última volta como âncora do sistema cambial

Moeda norte-americana deve deixar de ser única referência do sistema de câmbio para os países de recente industrialização

Um motivo importante para que os países desejem abandonar o vínculo com a moeda é a possibilidade de importar inflação

WOLFGANG MUNCHAU
DO "FINANCIAL TIMES"

Foi uma das mais influentes teorias sobre as taxas de câmbio na era da globalização e pode estar a ponto de desaparecer do cenário. Em 2003, os economistas Michael Dooley, David Folkerts-Landau e Peter Garber* propuseram aquilo que veio a ser conhecido como a Teoria de Bretton Woods 2. A idéia se baseava na observação de que países de industrialização recente costumavam vincular suas moedas ao dólar a uma taxa de câmbio depreciada, para promover crescimento econômico baseado em exportação. Em troca, eles reinvestiam o dinheiro que ganhavam com as exportações na economia dos EUA, que servia como âncora e como consumidor de último recurso para o planeta. Em 2006, os EUA operaram com um déficit em conta corrente superior a 6% de seu PIB (Produto Interno Bruto), nível que normalmente seria considerado excessivo. A Teoria de Bretton Woods 2 afirma que esse estado de coisas é tanto sustentável quanto desejável. Afirmar que nem todo mundo concorda com essa idéia é quase desnecessário. E agora parece que, quer você considere essa situação desejável, quer não, ela provavelmente é insustentável, de qualquer maneira. Uma prova estatística importante ainda que não conclusiva é o mais recente conjunto de dados sobre o fluxo mundial de fundos. Os fluxos financeiros que retornam aos Estados Unidos parecem ter sofrido parada súbita no trimestre passado. Os dados do Tesouro norte-americano sobre o Sistema Internacional de Capital (TIC, na sigla em inglês) demonstram queda maciça nas aquisições líquidas estrangeiras de títulos norte-americanos de longo prazo do final de junho em diante. Para ter idéia das magnitudes envolvidas, as aquisições líquidas estrangeiras de títulos norte-americanos de longo prazo -a diferença entre as aquisições estrangeiras de títulos norte-americanos e as aquisições norte-americanas de títulos estrangeiros- vinham mantendo uma média de cerca de US$ 70 bilhões ao mês em 2005 e subiram um pouco no ano passado. O influxo líquido em junho deste ano continuou a ser de fortes US$ 99,9 bilhões, mas o número caiu a US$ 19,5 bilhões positivos em julho, US$ 70,6 bilhões negativos em agosto e voltou a US$ 26,4 bilhões positivos em setembro. Se tomarmos os números vigentes em 2005 e 2006 como o montante necessário para manter o déficit em conta corrente dos Estados Unidos no patamar do ano passado (com o acréscimo ou a perda de alguns poucos bilhões de dólares), esse declínio súbito com certeza parece indicar uma grande alteração estrutural. Com a queda no superávit norte-americano na conta de capital, a lógica indica que o déficit do país em conta corrente deve registrar queda semelhante. No entanto, isso também aponta que o sistema de Bretton Woods 2 já não funciona da maneira que deveria. De certa forma, Bretton Woods 2 parece ser um gigantesco cartel internacional de lavagem de dinheiro. Você compra meus produtos e, em troca, eu devolvo seu dinheiro em forma de empréstimos. Talvez não seja surpreendente que tenha sido necessário um colapso do mercado de crédito para dar um fim a essa arapuca.
Futuro
E o que virá a seguir? Os regimes cambiais mundiais tendem a funcionar em ciclos longos, com os regimes de câmbio livre e de taxas administradas sucedendo um ao outro com um grau surpreendente de regularidade. O final do sistema de Bretton Woods original foi acompanhado por um período de livre flutuação das taxas de câmbio. A Europa deu início ao longo processo em direção à sua união monetária, por meio de um mecanismo de taxas de câmbio que resultaria, 30 anos mais tarde, em uma moeda unificada e de livre flutuação nos mercados de câmbio. Assim, o que teremos depois da Teoria de Bretton Woods 2? Consigo imaginar dois cenários. O primeiro é que o monopólio mundial do dólar dará lugar a um duopólio da moeda norte-americana e do euro. É impossível prever o momento preciso dessa mudança. Com o tempo, à medida que os países substituem o vínculo entre moedas e o dólar por uma cesta mista de divisas, é provável que procedam também a um reajuste em suas posições de reserva cambial. Um motivo importante para que desejem abandonar o vínculo com o dólar é a ameaça de importar inflação, que se tornou problema na China e nos seis países do Conselho de Cooperação para os Estados Árabes do Golfo (GCC, na sigla em inglês), depois da desvalorização da moeda norte-americana. Houve alguns recentes sinais, por exemplo, de que o vínculo com o dólar estaria a ponto de ser abandonado nos Emirados Árabes Unidos. Evidentemente, caso isso venha a acontecer, o dólar quase certamente cairá ainda mais e isso poderá induzir outros países a também abandonar o vínculo cambial com a moeda norte-americana. Não é difícil imaginar uma situação em que o sistema de Bretton Woods 2 se desmantelaria de maneira desordenada. Outra possibilidade, ao menos em teoria, é o surgimento de regimes regionais de taxas de câmbio, semelhante ao que aconteceu na Europa quando o sistema de Bretton Woods 1 entrou em colapso. Existe muita conversa sobre uma união monetária asiática, há bastante tempo, com poucos progressos concretos até o momento. De qualquer maneira, estamos provavelmente percorrendo a última e longa volta do dólar como única âncora do sistema mundial de câmbio. Ainda não compreendemos plenamente a nova era, mas provavelmente não será a Teoria de Bretton Woods 3.


*Ver, por exemplo, "An Essay on the Revised Bretton Woods System" [ensaio sobre o sistema de Bretton Woods revisado], Nber working paper 9971 www.nber.org.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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