São Paulo, quarta-feira, 03 de janeiro de 2007 |
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PAULO RABELLO DE CASTRO Neo-anarquia
APÓS A experiência neoliberal, instala-se gradualmente no país o experimento neo-anarquista. A falta de governo ou o não-governo é o que caracteriza a anarquia como forma de organização institucional. Neo-anarquia é a versão "light", pois nela o próprio governo participa do não-governo, deste lhe usufruindo os benefícios, pecuniários e políticos, as transações, as nomeações e, sobretudo, o pleno exercício dos poderes de tributar e cobrar juros à sociedade, porém não se imiscuindo naquilo que seria a razão de ser do ente governamental -a segurança nacional, a defesa da vida, os serviços essenciais, a organização do crescimento, a proteção das minorias e do ambiente. Não há duvida: vivemos a neo-anarquia no Brasil. Dois episódios recentes caracterizam bem o experimento. Um deles foi, e continua sendo, o apagão aéreo das últimas semanas. O outro, não menos grave, é o terrorismo urbano dentro da suposta capital do turismo brasileiro, o Rio de Janeiro. Os reflexos de ambos os episódios são imensos, e seus efeitos deletérios durarão por muito tempo. A característica neo-anárquica desses dois episódios é que deles o governo participa, ora promovendo-os, indireta ou explicitamente, ora contemporizando com seus protagonistas ostensivos. Quando se confrontam a realidade do apagão da aviação civil, do terrorismo nas cidades, do juro abissal que mata o crescimento, da expansão explosiva da máquina pública, da morte silenciosa nos hospitais públicos, da ignorância vicejante nas escolas e universidades, da vida sem oportunidades para milhões e milhões de "bolsistas" da pobreza instituída, as raízes de todas essas manifestações estão densamente entrelaçadas de modo a torná-las irmãs de uma só família de acontecimentos: a morte do governo. No caso do chamado apagão aéreo, ficou caracterizada a falência do modelo de agência reguladora tal como aqui praticado. Porém o que pouca gente ainda percebe é como esse apagão vem relacionado a uma crise anterior, a falta da malha aérea da Varig, provocada por uma seqüência quase ininterrupta de decisões desastrosas de governo -não obstante a má direção da própria empresa-, já que a ele cabia, por lei antiga mas vigente, a intervenção que nunca ocorreu num serviço que é concedido por ser de interesse público. Na questão Varig, privatizou-se o interesse público, primeiro numa tentativa de fusão operacional sem pé nem cabeça, de duas aéreas; em seguida tentou-se partir para uma abortada liquidação extrajudicial da empresa presumivelmente enferma, mas depois refluiu-se para a atitude do "deixa quebrar", para, mais à frente, o governo anunciar com pompa sua participação, por meio do BNDES, daí resultando a alienação efetiva a estrangeiros da empresa cujos principais credores são justamente os aeronautas e aeroviários brasileiros, que ficaram sem emprego e na iminência de ver esfareladas suas aposentadorias. Para quê, então, serve o governo? Para governar, para prevenir acontecimentos, para assumir responsabilidades, não para se auto-agraciar 91% de aumento em seus próprios subsídios. No entanto, o apagão da Varig já custou ao país muito mais do que teria sido necessário (cerca de US$ 300 milhões) para financiar o plano de recuperação da empresa, conforme proposto pelos credores sob a liderança dos seus próprios trabalhadores, exatamente há 12 meses. O resultado foi outro: o mercado de vôos internacionais (cerca de R$ 4 bilhões/ano) passou a ser dominado pelas companhias estrangeiras, nosso pessoal especializado hoje dirige táxis ou gerencia cafeterias, enquanto o governo "empresta" aviões à empresa concorrente, a mesma que esbanjava boa administração. Tudo segue igual em relação à segurança pública, que há muito não temos. As mesmas atitudes e interesses que conduzem a um apagão aéreo são as que nutrem o caos urbano. Não é por falta de recursos, tanto quanto por falta de interesse. O crime é organizado porque está estruturado nos altos escalões da máquina pública destinada a supostamente combatê-lo. E isso prevalece só quando o setor político da sociedade, seus representantes, são de feitio a coonestar, tergiversar ou mesmo participar desses consórcios. Que o leitor de olhos atentos aplique esse método simples de apuração de causas e efeitos em tantos mais aspectos de nosso neo-anarquismo e verificará, entre chocado e desalentado, os porquês de nossa estagnação enquanto economia e sociedade. PAULO RABELLO DE CASTRO , 58, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
rabellodecastro@uol.com.br
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