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ANÁLISE
Recuperação deve perder ritmo e o futuro será um duplo mergulho
GEORGE SOROS
ESPECIAL PARA O PROJECT SYNDICATE
Vivemos um momento no
qual a gama de incertezas que a
economia mundial enfrenta é
incomumente ampla. Acabamos de passar pela pior crise financeira desde a Segunda
Guerra Mundial. As únicas
comparações relevantes são a
bolha imobiliária do Japão, que
estourou em 1991 (e da qual o
país asiático não se recuperou),
e a Grande Depressão, dos anos
1930 -exceto que a atual crise
foi quantitativamente muito
maior e diferente em termos
qualitativos.
Ao contrário da experiência
japonesa, a atual crise envolveu
o mundo inteiro, em lugar de ficar confinada a um único país.
E, ao contrário da Grande Depressão, desta vez o sistema financeiro teve sua vida preservada por meios artificiais, em
lugar de o seu colapso ter sido
permitido.
De fato, a magnitude do problema atual é ainda maior que a
da Grande Depressão. Em
1929, o crédito total em circulação nos EUA equivalia a 160%
do PIB (Produto Interno Bruto) e subiu para 250%, em 1932.
Em 2008, começamos em
365% -e esse cálculo deixa de
fora o uso generalizado de derivativos, que não existiam nos
anos 1930.
A despeito disso, os esforços
artificiais de resgate funcionaram. Mal passado um ano da
quebra do Lehman Brothers, os
mercados financeiros se estabilizam, os mercados de ações se
recuperaram e a economia demonstra sinais de retomada. As
pessoas desejam retornar ao
ritmo usual dos negócios e
acreditar que o crash de 2008
tenha sido apenas um pesadelo.
Infelizmente, a recuperação
deve perder o pique e pode até
ser seguida por uma segunda
desaceleração econômica, embora eu não esteja seguro se esta ocorrerá neste ano ou em
2011. Minhas opiniões estão
longe de únicas, mas contrariam o clima dominante.
Quanto mais durar a recuperação, mais gente acreditará
que ela se perpetuará. No entanto, em meu juízo, isso é característico de situações muito
distantes do equilíbrio, nas
quais as percepções tendem a
se distanciar da realidade.
Para complicar as coisas, essa
disparidade de percepções funciona nos dois sentidos. A
maioria das pessoas ainda não
percebeu que a crise atual difere das anteriores e que chegamos ao final de uma era.
Outros observadores, entre
os quais me incluo, fracassaram
em antecipar a dimensão da recuperação.
Em termos gerais, as autoridades financeiras internacionais conduziram a crise da
mesma maneira que conduziram episódios anteriores: resgataram as instituições em risco de quebra e aplicaram medidas de estímulo monetário e
fiscal. Mas essa crise foi muito
maior, e as técnicas usuais não
funcionaram. O fracasso do
resgate ao Lehman Brothers
[primeiro banco a quebrar] foi
um evento histórico: os mercados financeiros efetivamente
deixaram de funcionar.
Isso significa que os governos
tinham de efetivamente garantir que nenhuma outra instituição, cujo colapso pudesse colocar o sistema em risco, enfrentasse risco de quebra. Foi então
que a crise se espalhou à periferia da economia mundial, porque os países da periferia não
eram capazes de oferecer garantias igualmente confiáveis.
A Europa Oriental foi a principal vítima. Os países em posição central usaram os fortes balanços de seus bancos centrais
para injetar dinheiro no sistema e garantir os passivos dos
bancos comerciais, enquanto
os governos se envolveram em
gastos sustentados por deficit
para estimular a economia, em
escala sem precedentes.
Mas a crescente crença de
que o sistema financeiro conseguiu escapar ao colapso e que
estamos retornando lentamente aos costumes usuais dos negócios é um sério erro de interpretação, no que tange à situação atual. Depois de quebrado,
Humpty Dumpty [o personagem em forma de ovo da obra
de Lewis Carroll, autor de "Alice no País das Maravilhas"] não
pode ser remontado.
A globalização dos mercados
financeiros, que ocorreu desde
os anos 80, permitiu que o capital financeiro se movesse livremente pelo mundo, tornando
difícil sua tributação ou regulamentação. Isso colocou o capital financeiro em posição privilegiada: os governos precisavam prestar mais atenção aos
requisitos do capital internacional do que às aspirações de
seus povos. Os países encontraram dificuldades para resistir
isoladamente a essa tendência.
Mas o sistema financeiro
mundial que emergiu do processo era fundamentalmente
instável, porque construído sobre a falsa premissa de que é
possível permitir que os mercados financeiros patrulhem a si
mesmos. Foi essa a causa do colapso, e é por isso que não poderemos remontá-lo na forma
que tinha.
Mercados mundiais precisam de regulamentação mundial, mas a regulamentação em
vigor tem por raiz o princípio
da soberania nacional. Existem
alguns acordos internacionais,
como os Acordos de Basileia sobre capitalização de bancos, e a
cooperação entre as autoridades regulatórias dos mercados
é boa. Mas a fonte de autoridade é sempre o Estado soberano.
Isso significa que não basta
reiniciar um mecanismo que
deixou de funcionar. Teremos
de criar um mecanismo regulatório que nunca existiu. Na situação atual, o sistema financeiro de cada país está sendo
sustentado e apoiado pelo governo desse país.
Mas os governos têm suas
próprias economias como
preocupação primária. Isso resulta no chamado protecionismo financeiro, que ameaça perturbar e talvez destruir os mercados financeiros mundiais. As
autoridades regulatórias britânicas jamais voltarão a confiar
nas islandesas, e os países da
Europa Oriental relutarão em
continuar dependentes de bancos sob controle estrangeiro.
Assim, a regulamentação
precisa ganhar escopo internacional. De outra forma, os mercados financeiros serão destruídos pela arbitragem entre
diferentes sistemas regulatórios. Empresas irão se transferir a países nos quais o clima regulatório é mais ameno, expondo outras nações a riscos que
estas não podem correr.
A globalização teve sucesso
porque forçou os países a remover regulamentações, mas o
processo não funciona em sentido reverso. Será difícil conseguir que os países concordem
quanto a uma regulamentação
uniforme. Países diferentes
têm interesses diferentes, o
que os propele a soluções diferentes.
Isso pode ser visto na Europa, onde os membros da União
Europeia não conseguem chegar a um acordo mútuo sobre
um conjunto uniforme de regras financeiras. Como poderia
o resto do mundo, então?
Nos anos 30, o protecionismo comercial tornou uma situação que já era ruim ainda
pior. Na economia globalizada
atual, a ascensão do protecionismo financeiro constitui perigo ainda maior.
"O sistema financeiro
mundial que emergiu do
processo [de
globalização dos
mercados financeiros]
era fundamentalmente
instável, porque
construído sobre a falsa
premissa de que é
possível permitir que os
mercados financeiros
patrulhem a si mesmos.
Foi essa a causa do
colapso, e é por isso que
não poderemos
remontá-lo na forma
que tinha"
GEORGE SOROS é presidente do conselho da
Soros Fund Management e presidente do Open
Society Institute. Seu mais recente livro é "The
Crash of 2008".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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