São Paulo, domingo, 03 de janeiro de 2010

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Espanha vê o declínio antes da recuperação

Otimismo da década de 90 dá lugar a pessimismo intenso entre a população

Sem o motor da construção civil, taxa de desemprego pode alcançar 20% neste ano e economia deve continuar a encolher

Luciana Coelho/Folha Imagem
Luminoso de Natal em catalão ironiza a situação espanhola, em Barcelona; taxa de desemprego no país é a mais alta da zona do euro

LUCIANA COELHO
ENVIADA ESPECIAL A BARCELONA

Enar Gallardo sai apressada do nº 8 da rua Joaquin Pou, no Bairro Gótico de Barcelona. São 13h20 da última segunda-feira de 2009, e a estudante de educação social de 22 anos é uma das quase 70 pessoas que, 10 minutos antes de as portas fecharem, ainda estavam na agência estatal de emprego.
Diz que tem vergonha de estar ali. Afinal, ela, de classe média, tem alternativas nesses seus primeiros meses "no paro" -o desemprego na Espanha. Outros muitos, não, conclui.
A despeito do raciocínio de Enar, o único traço comum nos rostos dentro da agência é o desânimo. São homens, mulheres, imigrantes, espanhóis, jovens, velhos, com filhos e solteiros, com roupas caras e baratas, currículos extensos ou não.
Com 1 de cada 5 pessoas na Espanha em idade ativa sem emprego, não dá mais para dizer que a crise no país tenha uma cara. Há, porém, grupos em que os "parados" são mais numerosos, e entre eles sobressaem o dos jovens até 30 anos e o dos imigrantes (os dados são nebulosos ante a situação irregular de muitos, mas estima-se o "paro" aí em 28%, aumento de 50% no ano).
"Muita gente está voltando, inclusive amigos meus", diz Karim Gharbaoui, um marroquino de 32 anos parado há cinco meses, apesar do diploma espanhol em hotelaria, dos dez anos de residência no país e dos cinco idiomas que fala. "Eu mesmo estou pensando em procurar emprego na Suíça."
Nesta virada de ano, os analistas estão pessimistas. Os espanhóis, idem. Pesquisa feita em novembro pelo Centro de Investigações Sociais para o jornal "El País" mostra que 69,4% dos entrevistados esperam que em um ano a situação econômica do país esteja igual ou pior. Só 2,5% a avaliam como "boa", e ninguém, como "muito boa".
Tanto desânimo não é infundado. Os salários espanhóis murcharam, parando abaixo da média europeia e criando a crescente classe dos "mileuristas", de pouco poder aquisitivo e, logo, um risco à recuperação econômica. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o IBGE local, metade dos assalariados no país recebe menos de 15,7 mil ao ano (média mensal de 1.300, ou R$ 3.300).

De mal a pior
Enar diz ter pelo menos quatro amigas sem emprego. Karim perdeu a conta. Um imigrante sul-americano que não quis se identificar suspirou antes de responder que já está sem trabalho há dois anos.
O entra e sai do prédio na Joaquin Pou, um entre dezenas de centros na cidade e de centenas no país, é sintomático. Uma foto no site do "El País" do domingo passado mostrava uma longa fila diante de uma agência semelhante em Madri. Todos esperavam a segunda-feira.
"Creio que a Espanha terá problemas por muito tempo", disse Albert Recio, do Departamento de Economia Aplicada da Universidade Autônoma de Barcelona. "Acho que o país tem uma doença econômica forte faz anos e que o setor de construção civil camuflava."
"Doentes econômicos da Europa" foi como a influente revista britânica "The Economist" carimbou os espanhóis em novembro.
Ninguém na União Europeia -com exceção, talvez, dos irlandeses- foi atropelado tão violentamente pela crise econômica como eles, e nenhum dos grandes países, nas projeções da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), levará tanto tempo para se recuperar.
Enquanto os vizinhos aos poucos se reerguem, o desemprego espanhol continuará inchando e tem boa chance de superar os 20% em 2010. O PIB seguirá em queda.
Recio diagnostica como origem da "doença" o modelo produtivo espanhol, que privilegiou os setores de construção civil e serviços, enquanto a indústria foi sistematicamente empobrecida. Modelo no qual o Estado, ainda que hoje sob o governo do socialista José Luiz Rodríguez Zapatero, limitou suas atribuições.
O agravante apontado por ele é a falta de capacidade de adaptação ou evolução da economia. A Espanha, avalia, é como a França ou a Escandinávia às avessas -o país de Nicolas Sarkozy e os vizinhos nórdicos podem ter hoje líderes conservadores, mas a estrutura de bem-estar social é tão enraizada na sociedade que qualquer menção a enxugá-la morre quase imediatamente.

Crise retroativa
"A meu ver", diz o economista, "a saída para a Espanha passaria por um aumento do setor público, onde hoje há empregos melhores que no privado e espaço para atividades que geram bem-estar social, pois há estudos que mostram que ainda se investe pouco nisso."
O terremoto econômico foi o baque maior, fazendo aumentar a fila do desemprego em 2,28 milhões de pessoas, para 4,15 milhões em dois anos. Mas o problema havia explodido antes, junto com a bolha da construção civil inflada durante os anos 90 e o início desta década com base em um mercado de crédito fácil -como tem sido a história de toda esta crise.
O resultado foi a proliferação de um número de imóveis muito superior à demanda e o consequente colapso de preços. Em muitas cidades -sobretudo as litorâneas-, o que mais se vê são anúncios de "vende-se". Igualmente estranhos para os padrões europeus são os baixos preços que os acompanham.
"Na Europa, o setor de construção pesa entre 5% e 8% em termos de empregos. Na Espanha só a construção em si representava 13%", compara Recio. Segundo a OCDE, o setor dispensou 1 em cada 4 operários no ano passado.
Como a construção empregava muitos imigrantes, estes foram os primeiros a receber o bilhete azul -uma oferta do governo, desde 2007, de um bilhete aéreo para voltarem a seus países de origem.
Não há ainda números confiáveis, mas a oferta está começando a ser aceita com mais afinco por marroquinos e, sobretudo, equatorianos.
Outro setor afetado diretamente pelas crises (a mundial e a imobiliária espanhola) é o de turismo, que responde por 6% do PIB do país. Enar Gallardo perdeu seu emprego no aeroporto de Barcelona ao ver a maioria das lojas do terminal principal fechar. "O movimento praticamente acabou."
Por ora, as medidas tomadas pelo governo se limitam a fundos extemporâneos para os benefícios sociais dos "parados". Têm data para acabar ante um caixa público minguado.
O deficit das contas públicas, depois de ficar em 4,1% do PIB em 2008, saltou para 9,6% no ano passado e, segundo a OCDE, vai continuar profundo neste ano, em 8,5%.
"Este país está sob uma tempestade de neve", diz Recio. "E o governo não tem nem pás."


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