São Paulo, Quarta-feira, 03 de Fevereiro de 1999
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DEMÔNIO DO CAPITALISMO
Investidor é capaz de criticar capitalismo que o tornou bilionário
Soros é mais complexo que imagem de megaespeculador

CLÓVIS ROSSI
enviado especial a Davos

Se houvesse uma eleição universal para desenhar a imagem de um suposto demônio do capitalismo, certamente esse rosto se aproximaria ou seria até igual ao de George Soros.
Esse húngaro naturalizado norte-americano chega aos 69 anos com a imagem do megaespeculador, o homem capaz de destruir moeda após moeda.
Basta citar a menção a Soros feita na segunda-feira pelo primeiro-ministro alemão, Gerhard Schroeder, no encontro do Fórum Econômico Mundial:
"Se até George Soros -e ele precisa saber, tendo ganho bilhões pela especulação- pede urgência na introdução de fatores reguladores (sobre o movimento de capitais), então é mais que tempo de passar a uma negociação sobre a arquitetura financeira internacional".
Como? Um especulador pedindo para regular exatamente os movimentos que lhe permitem ganhar dinheiro?
Sim. O aparente paradoxo basta para revelar como Soros é um homem muito mais complexo do que o retrata o rótulo de megaespeculador ou, na hipótese mais benigna, megainvestidor.
É, sim, verdade que ele quebra moedas. A lenda (ou os fatos) dizem que venceu uma queda-de-braço com o Banco da Inglaterra e abateu a libra esterlina, forçando sua saída do sistema europeu.
É também verdade (e ele nem se preocupa em negar) que especulou contra a coroa sueca.
Mas é igualmente um filósofo de vasta cultura humanista. Talvez por isso, tornou-se um crítico do sistema -o capitalismo- que o fez bilionário, dono de um fundo (o Quantum) com o melhor desempenho no setor, na média dos 29 anos em que atua.
"O fato de que a intervenção governamental provou-se ineficiente não é razão para acreditar que os mercados são perfeitos", diz. É difícil encontrar alguém mais capacitado a produzir tal frase. O próprio Soros diz que seu conhecimento sobre a "falibilidade" do mercado o ajudou a ganhar muito dinheiro.
Nem por isso virou um "fundamentalista do mercado", como costuma chamar os que só vêem virtudes no sistema.
Ao contrário, chega a considerar comunismo e capitalismo nascidos da mesma raiz. "O laissez-faire (liberalismo absoluto) baseia-se na mesma estrutura mental do marxismo", diz.
Explica: ambos nasceram em um momento em que havia certezas supostamente científicas sobre o mundo, uma visão que ele considera totalitária.
Pelo menos em parte, esse repúdio ao totalitarismo levou-o a criar, em 1979, o Fundo "Open Society" (Sociedade Aberta), assim como duas fundações para atuar em países comunistas (Hungria e União Soviética).
Foi a sua contribuição para abrir os regimes comunistas. Mas sua derrubada não o impediu de atrapalhar o sistema, supostamente capitalista, surgido na Rússia. Em meados do ano passado, pré-anunciou o colapso do país, ocorrido dias depois
Nem por isso deve se tomado como profeta, até porque tem feito previsões de cunho apocalíptico uma após a outra. Assim, aumenta sua chance de acertar.
Após a crise mexicana de 1994, gritou que os desdobramentos poderiam "evoluir para uma situação tipo 1929" (ano de início da mais grave crise financeira até então conhecida). Na crise asiática de 97, cantou: "A Ásia tem potencial para destruir o sistema comercial mundial".
Nem uma nem outra previsão se confirmaram até agora, mas até o presidente dos EUA, Bill Clinton, já disse que o mundo vive a sua mais grave crise financeira em 50 anos. Não é o apocalipse cantado por Soros, mas pode ser um pedaço andado.
Por isso, o presidente Fernando Henrique Cardoso deveria ter gravado a fogo a mensagem que ouviu de Soros quando os dois compartilharam uma sessão do encontro anual do Fórum, no ano passado.
"A tese de que o mercado tende a levar as coisas ao equilíbrio pode se aplicar a bens e serviços comuns, mas não funciona para mercados financeiros, que são inerentemente instáveis", disse.
De lá para cá, a instabilidade foi o pão de cada dia da moeda brasileira, até a sua derrubada.
É impossível saber se FHC decidiu ouvir a voz, que, de novo, soou, anteontem, como a trombeta do apocalipse. Em entrevista coletiva, Soros avisou que o Brasil tinha "muito pouco tempo para estabilizar" a situação.
Terá sido mera coincidência o fato de que, 24 horas depois, o governo brasileiro anuncie como presidente do Banco Central um de seus homens?
Soros pedia, para estabilizar a crise no Brasil, a construção de um "muro de dinheiro" por parte da comunidade financeira.
É coincidência o fato de Armínio Fraga ser um homem de prestígio tanto no FMI como na Secretaria norte-americana do Tesouro, para não falar de conhecimentos no setor privado?
O tempo dará as respostas às perguntas, mas talvez elas nem surgissem se um ônibus da pequena Davos passasse por cima de Soros, na sexta-feira.
O megainvestidor saiu do Hotel Belvedere rumo ao Centro de Congresso, onde se realizam as sessões do encontro anual.
Como havia muita neve acumulada nas calçadas, caminhava pelo leito da avenida Promenade. O ônibus vinha pelas suas costas, e o motorista esperou que ele e dois acompanhantes fossem para a calçada. Não foram. O motorista perdeu a paciência, chegou bem perto e lascou um buzinaço.
Soros pulou para a calçada, a salvo, e continuou sendo atração no Fórum, por mais que este tenha a maior concentração de personalidades por metro quadrado. Afinal, nenhuma delas é tão demonizada quanto esse senhor de modos afáveis, rosto rosado e óculos de lentes claras, capaz de satanizar o que o tornou bilionário, o capitalismo.


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