São Paulo, terça-feira, 03 de março de 2009

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ARTIGO

A vingança do excedente de poupança

PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

LEMBRAM-SE dos bons e velhos dias, quando costumávamos falar sobre a "crise do subprime" e havia até quem dissesse que a crise poderia ser "contida"? Ah, a nostalgia!
Hoje, sabemos que os empréstimos hipotecários de risco ("subprime") eram só uma pequena fração do problema. Até os maus créditos habitacionais, em termos mais amplos, eram apenas parte do que houve de errado. Vivemos em um mundo de devedores problemáticos, de incorporadores de shoppings nos EUA às economias "milagrosas" da Europa, e novos tipos de títulos problemáticos de dívida não param de surgir.
Como aconteceu essa crise mundial da dívida? Por que ela se espalhou tanto? A resposta, eu sugeriria, pode ser encontrada em um discurso pronunciado quatro anos atrás por Ben Bernanke, hoje presidente do Federal Reserve (Fed, o BC dos EUA). Na época, Bernanke estava tentando reconfortar o mercado. Mas o que disse então ainda assim serviu de prenúncio ao colapso que se seguiria.
O discurso, intitulado "o excedente mundial de poupança e o déficit dos EUA em conta corrente", oferecia uma explicação nova para a rápida ascensão do déficit comercial americano no início do século 21. As causas, argumentava Bernanke, estavam não nos EUA mas na Ásia.
Na metade dos anos 90, ele argumentou, as economias emergentes da Ásia eram grandes importadoras de capital, tomando empréstimos no exterior a fim de financiar seu desenvolvimento. Mas, depois da crise financeira asiática de 1997/8 (que parecia muito grave, mas hoje soa trivial, comparada aos atuais acontecimentos), esses países começaram a se proteger ao acumular imensas reservas de ativos estrangeiros; na prática, exportavam capital ao restante do mundo.
O resultado foi um planeta com muito capital barato à procura de algum destino.

Dinheiro nos EUA
A maioria desse dinheiro terminou nos EUA -daí o imenso déficit comercial do país, já que déficits comerciais são o avesso da moeda dos fluxos de capital. Mas, como Bernanke corretamente apontou, também houve forte fluxo de dinheiro para outros países. Entre eles, merecem menção especial alguns poucos países europeus de menor porte que, ainda que tenham registrado fluxos brutos inferiores aos acumulados pelo mercado americano, receberam mais capital em proporção à dimensão de suas economias.
Ainda assim, boa parte do excedente mundial de poupança veio parar nos EUA. Por quê?
Bernanke mencionou "a profundidade e a sofisticação dos mercados financeiros do país (que, entre outras coisas, permitem aos domicílios acesso fácil ao patrimônio imobiliário)". Profundidade, sim. Mas sofisticação? Bem, seria possível dizer que os banqueiros americanos, estimulados por um quarto de século de desregulamentação, lideraram o mundo em termos da descoberta de formas sofisticadas de enriquecer ao iludir os investidores.
E sistemas financeiros muito abertos e frouxamente regulamentados caracterizavam muitos dos demais recipientes de grande fluxos de capital. Isso pode explicar a correlação quase sobrenatural entre os elogios dos conservadores três anos atrás e o atual desastre econômico. "As reformas fizeram da Islândia um tigre nórdico", dizia estudo do Cato Institute.
"Como a Irlanda se transformou no tigre céltico" era o título de artigo da Heritage Foundation. "O milagre econômico estoniano" servia de título a outra avaliação. Os três países estão em profunda crise, agora.

Ilusão de riqueza
Por algum tempo, o fluxo de capital criou uma ilusão de riqueza nesses países, da mesma maneira que o fez para os proprietários de imóveis americanos: os preços dos ativos estavam em alta, as moedas eram fortes e tudo parecia bem. Mas bolhas sempre estouram, mais cedo ou mais tarde, e os milagres econômicos de ontem são as economias-problema de hoje, nações cujos ativos evaporaram mas cujas dívidas são muito reais. E essas dívidas são um fardo especialmente pesado porque a maioria dos empréstimos era denominada em moedas de outros países.
O dano tampouco se confina aos devedores originais. Nos EUA, a bolha da habitação ocorreu principalmente ao longo das duas costas, mas, quando ela estourou, a demanda por bens industrializados, especialmente automóveis, entrou em colapso e isso teve custo terrível para o coração industrial do país. De maneira semelhante, as bolhas europeias ocorreram principalmente nas periferias do continente, mas a produção industrial da Alemanha -que jamais passou por uma bolha financeira e é o coração industrial da Europa- está caindo rapidamente, graças a queda profunda nas exportações.
Se você quer saber de onde veio a crise financeira, pense no assunto assim: estamos assistindo à vingança do excedente.
E o excedente de poupança continua lá. De fato, agora se tornou ainda maior, porque os consumidores empobrecidos redescobriram as virtudes da parcimônia, e o boom imobiliário mundial, que oferecia um veículo para o investimento do excesso de poupança, transformou-se em contração mundial.
Uma maneira de observar a situação global agora é compreender que estamos sofrendo de um paradoxo de poupança: em todo o mundo, os montantes economizados excedem o total que as empresas estão dispostas a investir. E o resultado é uma desaceleração mundial que causa perdas a todos.
Portanto, foi assim que essa confusão começou. E ainda estamos tentando descobrir como sair dela.


PAUL KRUGMAN , economista, é colunista do "New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA).

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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