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ARTIGO
A vingança do excedente de poupança
PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"
LEMBRAM-SE dos bons e
velhos dias, quando costumávamos falar sobre
a "crise do subprime" e havia
até quem dissesse que a crise
poderia ser "contida"? Ah, a
nostalgia!
Hoje, sabemos que os empréstimos hipotecários de risco
("subprime") eram só uma pequena fração do problema. Até
os maus créditos habitacionais,
em termos mais amplos, eram
apenas parte do que houve de
errado. Vivemos em um mundo
de devedores problemáticos, de
incorporadores de shoppings
nos EUA às economias "milagrosas" da Europa, e novos tipos de títulos problemáticos de
dívida não param de surgir.
Como aconteceu essa crise
mundial da dívida? Por que ela
se espalhou tanto? A resposta,
eu sugeriria, pode ser encontrada em um discurso pronunciado quatro anos atrás por Ben
Bernanke, hoje presidente do
Federal Reserve (Fed, o BC dos
EUA). Na época, Bernanke estava tentando reconfortar o
mercado. Mas o que disse então
ainda assim serviu de prenúncio ao colapso que se seguiria.
O discurso, intitulado "o excedente mundial de poupança e
o déficit dos EUA em conta corrente", oferecia uma explicação
nova para a rápida ascensão do
déficit comercial americano no
início do século 21. As causas,
argumentava Bernanke, estavam não nos EUA mas na Ásia.
Na metade dos anos 90, ele
argumentou, as economias
emergentes da Ásia eram grandes importadoras de capital, tomando empréstimos no exterior a fim de financiar seu desenvolvimento. Mas, depois da
crise financeira asiática de
1997/8 (que parecia muito grave, mas hoje soa trivial, comparada aos atuais acontecimentos), esses países começaram a
se proteger ao acumular imensas reservas de ativos estrangeiros; na prática, exportavam
capital ao restante do mundo.
O resultado foi um planeta
com muito capital barato à procura de algum destino.
Dinheiro nos EUA
A maioria desse dinheiro terminou nos EUA -daí o imenso
déficit comercial do país, já que
déficits comerciais são o avesso
da moeda dos fluxos de capital.
Mas, como Bernanke corretamente apontou, também houve
forte fluxo de dinheiro para outros países. Entre eles, merecem menção especial alguns
poucos países europeus de menor porte que, ainda que tenham registrado fluxos brutos
inferiores aos acumulados pelo
mercado americano, receberam mais capital em proporção
à dimensão de suas economias.
Ainda assim, boa parte do excedente mundial de poupança
veio parar nos EUA. Por quê?
Bernanke mencionou "a profundidade e a sofisticação dos
mercados financeiros do país
(que, entre outras coisas, permitem aos domicílios acesso fácil ao patrimônio imobiliário)".
Profundidade, sim. Mas sofisticação? Bem, seria possível dizer que os banqueiros americanos, estimulados por um quarto de século de desregulamentação, lideraram o mundo em
termos da descoberta de formas sofisticadas de enriquecer
ao iludir os investidores.
E sistemas financeiros muito
abertos e frouxamente regulamentados caracterizavam muitos dos demais recipientes de
grande fluxos de capital. Isso
pode explicar a correlação quase sobrenatural entre os elogios
dos conservadores três anos
atrás e o atual desastre econômico. "As reformas fizeram da
Islândia um tigre nórdico", dizia estudo do Cato Institute.
"Como a Irlanda se transformou no tigre céltico" era o título de artigo da Heritage Foundation. "O milagre econômico
estoniano" servia de título a outra avaliação. Os três países estão em profunda crise, agora.
Ilusão de riqueza
Por algum tempo, o fluxo de
capital criou uma ilusão de riqueza nesses países, da mesma
maneira que o fez para os proprietários de imóveis americanos: os preços dos ativos estavam em alta, as moedas eram
fortes e tudo parecia bem. Mas
bolhas sempre estouram, mais
cedo ou mais tarde, e os milagres econômicos de ontem são
as economias-problema de hoje, nações cujos ativos evaporaram mas cujas dívidas são muito reais. E essas dívidas são um
fardo especialmente pesado
porque a maioria dos empréstimos era denominada em moedas de outros países.
O dano tampouco se confina
aos devedores originais. Nos
EUA, a bolha da habitação
ocorreu principalmente ao longo das duas costas, mas, quando
ela estourou, a demanda por
bens industrializados, especialmente automóveis, entrou em
colapso e isso teve custo terrível para o coração industrial do
país. De maneira semelhante,
as bolhas europeias ocorreram
principalmente nas periferias
do continente, mas a produção
industrial da Alemanha -que
jamais passou por uma bolha financeira e é o coração industrial da Europa- está caindo
rapidamente, graças a queda
profunda nas exportações.
Se você quer saber de onde
veio a crise financeira, pense no
assunto assim: estamos assistindo à vingança do excedente.
E o excedente de poupança
continua lá. De fato, agora se
tornou ainda maior, porque os
consumidores empobrecidos
redescobriram as virtudes da
parcimônia, e o boom imobiliário mundial, que oferecia um
veículo para o investimento do
excesso de poupança, transformou-se em contração mundial.
Uma maneira de observar a
situação global agora é compreender que estamos sofrendo de um paradoxo de poupança: em todo o mundo, os montantes economizados excedem
o total que as empresas estão
dispostas a investir. E o resultado é uma desaceleração mundial que causa perdas a todos.
Portanto, foi assim que essa
confusão começou. E ainda estamos tentando descobrir como sair dela.
PAUL KRUGMAN , economista, é colunista do
"New York Times" e professor na Universidade
Princeton (EUA).
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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