São Paulo, Quarta-feira, 03 de Março de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

A Lei Áurea da produção primária

ANTÔNIO ERNESTO DE SALVO

A recente tentativa do governo de imaginar a taxação da produção primária, atingindo especialmente os produtores de soja, teve pronta reação de toda a sociedade. Se o país é competitivo nessa commodity, há mais razões para promover o aumento de suas exportações e criar melhores condições de produção do que taxar as vendas externas de soja.
Expandir a produção significa amealhar receitas superiores aos atuais US$ 4,9 bilhões obtidos com essas exportações. Taxar a comercialização da soja, num primeiro instante, poderia até representar ganho, que certamente não compensará os graves prejuízos causados pela perda de competitividade do produto nacional, o qual deixaria de ser comercializado nas quantidades desejadas. Afinal, aquele que procura vender imposto para outros países, inflando preços com tributações incidentes na cadeia produtiva, coloca-se na contramão da história.
Quanto a isso, estamos de acordo. Mas o que é que parece leão, tem cara de leão, pata de leão e não é leão? Todo mundo sabe que é a leoa. O que é que taxa a exportação, mas não é imposto de exportação? É o artigo 3º, inciso 2º, da Lei Kandir, que, se revogado, teria exatamente o mesmo efeito de um imposto de exportação.
Pior do que isso: seria um imposto seletivo de exportação. Não seletivo quanto à essencialidade do bem, o que seria razoável, mas quanto ao setor que passa a ser tributado. Atingiria apenas os mais competitivos: o setor primário e os semi-elaborados.
A crise cambial e especialmente a Lei Kandir livraram momentaneamente os produtos agropecuários da taxação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas exportações. Além de ter corrigido uma política discricionária de taxação do setor produtor rural "vis-à-vis" os demais setores da economia, a nova legislação inseriu o Brasil num contexto competitivo e de modernização da política tributária.
O crescimento das exportações ocorrido nestes últimos dois anos deve-se, em boa medida, à desoneração da incidência do ICMS nas exportações. Em 1997, as vendas externas registraram crescimento de 15,3% em relação ao ano anterior; em 1998, o aumento do volume das exportações gerou um superávit de mais de US$ 7 bilhões na balança comercial.
A Lei Kandir corrigiu a visão equivocada de que o Brasil deveria incentivar mais as exportações de produtos processados, em detrimento de produtos primários. Atualmente, o que prevalece na teoria econômica é que o país deve incentivar as exportações dos seus produtos mais competitivos, independentemente de ser produtos primários ou não. A grande verdade é que todos os segmentos saíram ganhando com a retirada da cobrança do ICMS nas exportações, pois isso proporcionou melhores condições para a concorrência no mercado externo.
Se houver uma análise correta e isenta, a mesma ira sagrada que se levantou contra o imposto de exportação há de repetir contra a revogação do que a Lei Kandir fez em relação ao setor primário. A Lei Kandir é a Lei Áurea do exportador de produtos primários e semi-elaborados. Ela restabelece um princípio de isonomia entre os setores, retira um preconceito e acaba com a injustiça. Revogá-la seria como alguém propor como solução para um problema social o restabelecimento da escravidão no Brasil. É absolutamente destituído de bom senso.
Não estamos dizendo que se deixe de examinar a situação dos Estados eventualmente prejudicados com perda de receita. Há outros tópicos da Lei Kandir que mereceriam estudos. A sociedade está de acordo com essa análise. Se houver necessidade de tributações, também não poderíamos ficar contra, desde que fossem distribuídas com justiça pelos diversos segmentos da sociedade, observando o preceito constitucional da isonomia.
Que todos contribuam. Se não houver outra solução além de taxar algum tipo de produto exportado, então, que se taxem todos os setores, mesmo que para isso seja preciso aprovar uma emenda constitucional. Mas fazer outra vez do campo o burro de carga de eventuais desmandos de Executivos, não.


Antônio Ernesto de Salvo, 65, é presidente da CNA (Confederação Nacional da Agricultura).


Texto Anterior: Dólar bate novo recorde apesar da atuação conjunta do BC e BB
Próximo Texto: Rússia vê exagero em pressão de Camdessus contra o país
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.