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OPINIÃO ECONÔMICA
Relações carnais
BENJAMIN STEINBRUCH
Uma das mais infelizes declarações na área das relações internacionais é atribuída ao
ex-chanceler argentino Guido Di
Tella, que serviu ao governo do
presidente Carlos Menem de 1991
a 1999. Ele disse que a Argentina
pretendia manter "relações carnais" com os Estados Unidos.
Nunca se viu na América Latina algo tão explícito em matéria
de submissão aos EUA. A declaração não foi apenas um arroubo
retórico. O governo Menem adotou o alinhamento incondicional
à potência hegemônica do continente como estratégia de política
externa.
Por conta disso, Menem esnobou seus antigos parceiros sul-americanos, levou o Mercosul em
banho-maria e, num certo momento, parecia sonhar em transformar a Argentina em uma espécie de "Estado associado" aos
EUA. Durante a Guerra do Golfo,
em 1991, enviou quatro fragatas
argentinas para o combate, atitude ridicularizada no cenário internacional.
As relações carnais preconizadas por Di Tella e seguidas por
Menem levaram a Argentina a
servir como cobaia latino-americana para variadas experiências
neoliberais dos anos 90, muitas
das quais, a bem da verdade,
também adotadas no Brasil. Privatizações a qualquer preço, redução indiscriminada do aparelho estatal, liberalização de importações e dolarização da economia foram algumas das receitas
aplicadas por Menem.
Basta olhar para a Argentina
que o novo presidente Néstor
Kirchner herdou para ver o resultado dessa experiência "carnal".
O PIB argentino caiu 10,9% só em
2002 e 25% nos últimos três anos.
A taxa de desemprego, de 17,8%, é
uma das mais altas do mundo,
quase 60% da população está na
faixa de pobreza e cerca de 30%
são indigentes. Trata-se de um
desastre de enormes proporções
para um país que já ostentou nível de vida quase europeu e teve
uma classe média de alto poder
aquisitivo.
De nada valeram os anos de
"relações carnais" no momento
em que a Argentina precisou de
ajuda. O Fundo Monetário Internacional exigiu mais e mais sacrifícios e o Tesouro americano fechou seus cofres e virou as costas
para os insistentes pedidos de socorro financeiro. Sem ter como
obter recursos, o país foi à moratória e dela não saiu até hoje.
Kirchner assumiu o governo com
dívidas de US$ 30 bilhões aos organismos multilaterais de crédito
e "default" de US$ 60 bilhões com
credores privados.
Na semana passada, o representante comercial dos Estados Unidos, Robert Zoellick, esteve no
Brasil. O tom das declarações das
autoridades brasileiras deixou a
agradável sensação de que o Brasil aprendeu a lição do desastre
argentino. Em vez de negociações
multilaterais da Alca, o Brasil
manifestou sua preferência por
negociações bilaterais tendo de
um lado os parceiros do Mercosul
e de outro os EUA.
Zoellick rejeitou a proposta brasileira, mas o resultado foi bom.
Terminada a viagem, a despeito
da postura insubmissa, o Brasil
ganhou rasgados elogios em editorial do "The New York Times".
A administração Lula deu mostras de que não se deixará seduzir
pela tentação de usar seu atual
prestígio internacional para esnobar vizinhos sul-americanos e
procurar "relações carnais" diretas com os americanos. E reforçou
a idéia de dar prioridade total ao
aprofundamento de relações com
os parceiros do Mercosul e à abertura de canais com os demais países da América do Sul.
É arrojado o projeto de transformar o BNDES em um banco de
desenvolvimento capaz de alavancar o processo de industrialização da América do Sul. Além de
financiar o comércio, o banco poderá dar suporte a projetos de infra-estrutura na Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Equador.
Nada há de errado em colocar o
BNDES para financiar projetos
no Peru, ajudar empresas brasileiras a se instalar ou a comprar
ativos na Argentina e no Chile,
promover fusão de petroquímicas
sul-americanas ou mesmo fomentar a criação de uma megaempresa petrolífera no continente, já batizada de Petroamérica.
Tudo isso só vai contribuir para
consolidar a liderança brasileira
na América do Sul, à medida que
se ampliam os mercados consumidores da região. É um caminho
oposto àquele marcado pelas submissas "relações carnais" do período Menem.
Benjamin Steinbruch, 49, empresário,
é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.
E-mail - bvictoria@psi.com.br
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