São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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BRASIL PROFUNDO

Trabalhadores recebem R$ 20 para extrair argila e produzir mil tijolos e só conseguem fabricar 500 por dia

"Mar de lama" sustenta 25 mil no Piauí

FÁBIO GUIBU
DA AGÊNCIA FOLHA, NO PIAUÍ

Um "mar de lama" sustenta cerca de 25 mil pessoas no Piauí. São homens, mulheres e crianças que dependem da atividade dos 5.000 trabalhadores das olarias artesanais, que funcionam no Estado às margens de rios.
Os oleiros, como são chamados esses "homens da lama", passam em média 12 horas por dia, seis dias por semana afundados no barro, pés descalços, no fundo de poços frios com até quatro metros de profundidade.
Eles cavam o chão e, com as mãos, retiram a argila e moldam tijolos, que secam ao sol. Para produzir mil peças, recebem R$ 20. Cada trabalhador só consegue fazer 500 tijolos por dia. Depois de queimado em fornos de lenha, o produto chega ao consumidor por até R$ 120 o milheiro.
Com uma renda mensal de R$ 240, os oleiros piauienses teriam que trabalhar dez anos e quatro meses para receber o equivalente a um mensalão de R$ 30 mil.
"Trabalhar na lama é um serviço duro, mas honesto", diz Francisco das Chagas da Silva, 53. Herdeiro da profissão exercida pelo pai, ele classifica as denúncias do mar de lama político brasileiro como "uma escandice [um escândalo]" que viu na TV.
Silva, que nunca fez outra coisa na vida além de extrair barro e confeccionar tijolos, afirma que em 40 anos de trabalho nada conquistou. "Sempre fiz isso, e o que consegui até agora foi perder a saúde e ganhar a velhice."
Olhos fixos na enxada e no chão, o oleiro reclama: "Parece que, em vez de melhorar o país, querem piorar. Não entendo como é que tem gente assim, que é rica e ainda fica roubando os outros", afirma o trabalhador, que é casado e tem três filhos -o mais velho com 11 anos.

Lama no interior
Foi com a idade do filho de Silva que José Sales, 35, começou a aprender, também com o pai, as primeiras lições de como tirar sustento do lamaçal, na zona rural de Esperantina (a 183 km de Teresina). Sales chegou a cursar até a 7ª série, mas nunca conseguiu um emprego formal.
Ele sai de casa, onde mora com a mulher e os filhos Liana, 4, e José, 6, às 5h. Às vezes, volta para almoçar. Muitas vezes, come ali mesmo, sentado em um tronco, na clareira aberta a fogo.
Sales nunca ouviu falar do escândalo dos Correios, de CPI ou de mensalão. Mas tem uma visão crítica, criada a partir de sua própria condição de vida. "Os homens da lei não dão jeito, então a gente tem que viver assim."
O oleiro trabalha com cerca de 15 pessoas em uma área de extração de aproximadamente 5.000 metros quadrados. A paisagem do local lembra um garimpo. Nos buracos alagados, homens enlameados cavam a terra.
Com as mãos, eles fazem bolas de argila, que são jogadas em gabaritos de madeira. O barro é alisado, molhado e alisado de novo. Três tijolos ficam prontos por vez. Enquanto secam no chão, os trabalhadores voltam para a vala e começam tudo de novo.

Medo da chuva
Sem uma expectativa de melhora, os rumos da política nacional e da economia não os preocupam. O risco de doença também não os incomoda. O grande temor dos "homens da lama" é a chuva, que dissolve seu maior patrimônio, os tijolos.
Para evitar prejuízos nessa época de transição do período de chuva para o de estiagem, eles fazem pilhas e as cobrem com folhas de babaçu, uma palmeira muito comum na região.
Quando as chuvas cessarem, em agosto, o número de homens em busca de sobrevivência no "mar de lama" piauiense vai aumentar. No interior do Estado, eles virão principalmente das lavouras, que não terão condições de produzir durante a seca.
Em Teresina, eles serão os mesmos que há anos confeccionam tijolos durante a seca e erguem paredes e muros na cidade nos períodos chuvosos.
"Com esse desemprego, quem tem sorte trabalha como ajudante de pedreiro, no inverno", diz Silva -o oleiro que viu a "escandice" dos políticos na TV. "Quem não tem [sorte] vai catar lixo."


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