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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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LUÍS NASSIF

A intérprete do Brasil

Não se pode reclamar da falta de cantoras no país. Especialmente depois dos anos 50, o universo vocal feminino se enriqueceu estupendamente. De Angela Maria a Elizeth Cardoso, de Dalva de Oliveira a Isaurinha Garcia. Depois, o pessoal do samba-canção, com Maysa e Doris Monteiro, o da bossa nova, com Silvinha Telles, Vanda Sá e a inigualável Alaíde Costa, os que chegaram à MPB, como Nara e Elis. Finalmente, as intérpretes mais modernas, como Gal, Zizi, Rosa Passos, e os fenômenos mais recentes de Cássia Eller e Marisa Monte.
Entre todas, ousaria dizer que poucas chegaram ao nível de Nana Caymmi. No seu último show, uma certa ruiva de Ribeirão Preto me chamou a atenção: o timbre de voz, a entonação, a interpretação fazem de Nana uma intérprete do nível das maiores cantoras negras norte-americanas.
É verdade que as cordas vocais da família Caymmi mereceriam uma pesquisa à parte. Nunca houve família igual, do velho Dorival aos filhos Nana, Danilo e Dori -para mim e para Samuel Macdowell Figueiredo, o maior intérprete nacional (ao lado de Milton Nascimento).
Mas a voz de Nana é um caso de timbre raríssimo, que em certos momentos parece áspero, mas resvala para uma emoção um pouco difícil de explicar, sem a doçura óbvia das cantoras convencionais, mas com uma carga de tensão inigualável. Quando puxa o som de dentro da garganta, a voz vai saindo rascante, rascante, até explodir redonda, como esses fogos de artifício de festas juninas, que espalham estrelas por todos os lados.
A grande Nana apareceu para o público por meio de uma vaia homérica, em um dos festivais da Record. Casada com Gilberto Gil, Nana interpretou uma canção lindíssima ("madrugou, madrugou / a mancha branca do sol"). O público universitário, preso aos padrões de vaia-aplauso que caracterizavam os festivais da época, não tinha nenhuma condição de entender a sofisticação da interpretação de Nana. Era servir vinho fino a quem estava acostumado com Fogo Paulista. Mas o que fazer? As vaias eram da mesma conotação fascista das que atingiram Chico Buarque e Tom Jobim no Festival Internacional da Canção.
No caso de Nana, ainda predominava o padrão estético estereotipado pela bossa nova, segundo o qual a única forma de interpretação válida era a que abolia qualquer impostação de voz.
Um pouco antes, Nana havia interpretado outro clássico, "Saveiros" (de Nelson Motta e Dori), e venceu o Primeiro Festival Internacional da Canção, em 1966.
Depois daquela vaia, Nana foi gradativamente se firmando no universo musical brasileiro, venerada pelos especialistas e pela parte mais sofisticada do público. Como toda grande intérprete romântica, não prescindiu de uma vida afetiva complicada. Teve seus amores, suas decepções, tudo devidamente convertido em interpretações das mais belas que este país já produziu.
No palco, jamais se deixou seduzir pelo estrelismo. Pelo contrário, sua espontaneidade foi tal que certa vez um cantor grego passou por aqui e ficou espantado e encantado com o Brasil. Como era possível, disse ele em uma entrevista, uma cantora daquele porte, das maiores que já ouvira, terminar o show dizendo que precisava ir para casa porque tinha que acordar cedo, no dia seguinte, para fazer a feira?
A espontaneidade da família Caymmi, aliás, chega a ser algo chocante. Quando se metem a falar de terceiros, em público, não perdoam nem Madre Teresa de Calcutá. Sobra para pai, para amigo de pai, para irmão.
Mas, quando Nana se debruça sobre uma canção e essa canção se chama "Acalanto", os tempos se calam, e a nação musical reverencia a sua grande voz.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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