São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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MARCOS LISBOA

Os clérigos e o telescópio de Galileu


Há preconceito nos debates desde a autonomia de agências regulatórias à mudança nas leis trabalhista e cambial

EXISTEM muitos exemplos de preconceito prevenindo a adoção de boas políticas públicas. A história de Ignaz Semmelweis (1818-1865) é famosa na medicina. No Brasil, há o caso semelhante de Carlos Langoni e sua contribuição para o estudo da relação entre educação e geração de renda.
Ainda que menos conhecido, é igualmente trágico.
Em meados do século 19, Semmelweis verificou que parturientes austríacas atendidas por alunos de medicina apresentavam taxa de mortalidade maior do que aquelas sob os cuidados de parteiras. Após uma série de testes em ambos os grupos, propôs que a precária higiene dos estudantes depois do contato com cadáveres explicaria a diferença entre as taxas de mortalidade (as parteiras não participavam de autópsias). Entre outras razões, o argumento foi combatido pelo incômodo de sua conclusão (médicos causando doenças) e por ofender a crença vigente que associava doenças a condições atmosféricas. Infelizmente, a tese de Semmelweis só foi aceita após sua morte e a de milhares de parturientes.
No começo dos anos 70, Langoni documentou o significativo impacto da educação sobre a renda pessoal e o crescimento econômico. Sua tese de doutorado na Universidade de Chicago realiza uma análise exaustiva dos setores econômicos e conclui que a educação básica seria o destino mais rentável para os recursos públicos. Seu trabalho seguinte contém um conjunto impressionante de evidências estatísticas indicando que a escolaridade seria determinante fundamental da renda do trabalho e da distribuição de renda.
Ambos os trabalhos utilizam as mais modernas técnicas disponíveis à época, combinadas com uma primorosa e cuidadosa análise dos dados.
Langoni propôs expandir os recursos públicos destinados à educação básica, mesmo que significasse reduzir o apoio a outras áreas. Como no caso de Semmelweis, suas conclusões foram descartadas com base em frágeis contra-argumentos e na inconveniência de suas conclusões, contrárias às crenças existentes.
Certezas imunes ao debate técnico colaboraram para nosso atraso em educação.
Na década de 80, a quase-unanimidade dos economistas brasileiros rejeitava a importância de austeridade fiscal para ampliar a capacidade de crescimento econômico; há poucos anos, a proposta de focalização da política social (concentrar recursos públicos nas famílias de menor renda) encontrou forte oposição. Nos dois casos, em vez de analisar cuidadosamente as evidências (essencial, pois muitas teses aparentemente boas se revelam equivocadas), a crença dominante optou pela indignação e pela rejeição sumária das propostas; felizmente, apenas parcialmente bem-sucedida no segundo caso.
O preconceito se caracteriza pela recusa em debater a evidência apresentada, seja pela desqualificação de quem a propõe, seja pelo recurso a argumentos de autoridade. Outra característica é aceitar, de bom grado, qualquer argumento, por mais frágil que seja, desde que favorável ao que se acredita. A conseqüência é a perpetuação da crença da mesma forma que na tradição religiosa: a verdade antecede e é imune à análise, e a discordância revela o infiel.
Hoje, preconceitos se manifestam nos debates sobre reformas institucionais, da autonomia das agências regulatórias (incluindo o BC) ao aperfeiçoamento das legislações trabalhista e cambial. Há muitas parturientes na fila de espera.


MARCOS DE BARROS LISBOA , 43, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (governo Lula) e é diretor-executivo do Unibanco. Escreve neste espaço a cada quatro semanas.


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