São Paulo, segunda, 3 de agosto de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Esmeralda

JOÃO SAYAD
"Vestida de branco /de véu e grinalda / lá vem Esmeralda / casar na igreja /
Deus queira que os anjos / não cantem para ela / e que lá na capela / seu Vigário não esteja"
O noivo rejeitado não teve vergonha e cantou a dor de cotovelo e a frustração. Esmeralda casou com outro.
Como o noivo com dor de cotovelo, não deveria mencionar nesta coluna o bem-sucedido leilão da Telebrás.
US$ 22 bilhões! A "Gazeta Mercantil" anuncia que o Brasil decola com a privatização. O "Jornal do Brasil" fala no maior leilão do século.
A Folha é menos entusiasmada. Vinicius Torres Freire acha que a privatização é "mais ou menos perfumaria". Clóvis Rossi se revolta contra o abuso do conceito de "revolução" para o episódio.
Concordo com os dois, mas, como noivos, deveríamos ter ficado calados. A Telebrás é uma empresa que deu certo.
Hoje em dia a dívida externa vira reserva ou importação. Na época dos militares, a dívida externa transformou-se em telefones e Telebrás. E a Telebrás foi bem vendida.
Além disso, com a privatização da Telebrás poderemos mudar de assunto. E ficar esperando o Brasil "decolar".
Enquanto isso, fico lembrando que em 1985 e 1986 a Telebrás tinha planos ambiciosos de investimento. Seriam milhões de novos terminais financiados, em parte por recursos próprios, em parte pelos assinantes que comprariam ações da empresa a prazo.
Tudo era favorável: o investimento era rentável, havia demanda por mais telefones e o projeto atendia às necessidades do país, que passava pela crise do petróleo (o telefone substituía o transporte e o consumo de energia), e a indústria nacional tinha capacidade ociosa para atender. Era sopa no mel.
O governo, entretanto, não autorizava o investimento. Por uma razão forte e absurda: os recursos próprios da empresa tinham que ser usados para comprar ORTNs emitidas pelo Tesouro, e assim diminuir o déficit público que tinha crescido por causa da crise da dívida externa.
As vendas de ações, que constituiriam a fonte alternativa de financiamento, também estavam proibidas, porque representavam endividamento do setor público e, portanto, novamente déficit público que tinha que ser controlado.
O governo não autorizava o investimento por causa do déficit público, cuidadosamente vigiado pelo FMI.
Segundo o FMI, a venda de ações a prazo por empresa pública aumentaria o déficit público, que aumentaria o déficit comercial e a dívida externa. Raciocínio estranho, que continua sendo usado até hoje.
O mesmo raciocínio foi usado outras vezes e ficamos sem os telefones que queríamos.
Agora a Telebrás é privada. Pode se endividar, usar recursos próprios e ampliar a oferta de terminais telefônicos. Uma mudança espetacular!
Só porque o governo vendeu 50% das ações da empresa, as teles podem tomar dinheiro emprestado, vender ações à vista ou a prazo e ampliar a oferta de telefones. Não afeta mais as exportações e as importações como antes. E o FMI não tem mais nada a ver com os telefones. Só porque são privados.
É uma solução mágica: venda de ações de empresa pública é igual a déficit público, e o FMI não deixa, porque gera exportações maiores do que importações. Venda de ações de empresa privada, entretanto, pode.
Não consigo explicar, só sei repetir.
Também não consigo explicar como as agências reguladoras do setor de telecomunicações, do setor elétrico e de quaisquer outros setores poderão ser "independentes" dos interesses do setor.
Será que o presidente da Anatel será escolhido entre os melhores empresários rurais ou entre os bispos da CNBB? Ou será que presidente e burocracia da Anatel virão do próprio setor?
Na realidade, como o "ex-noivo da Esmeralda", não deveríamos ter ido à igreja. Que sejam muito felizes!


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net



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