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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Desnacionalização e vulnerabilidade externa
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
Na década de 90, as autoridades monetárias deixaram
entrar, sem controle, montantes
crescentes de capitais estrangeiros
de todos os tipos. A liberalização
comercial e financeira produziu
um aumento brutal dos passivos
externos do país, que dobraram
nos últimos cinco anos, alcançando cerca de US$ 450 bilhões. A crise
internacional de 1997 provocou
uma fuga de capitais violenta, e a
ameaça de colapso cambial, em
fins de 1998, levou o país a recorrer
ao FMI para obter um empréstimo
de contingência de US$ 40 bilhões
e restabelecer o financiamento externo, cujas necessidades globais
alcançaram US$ 73 bilhões em
1999 (contra US$ 12,6 bilhões em
1994). Os compromissos externos
diminuíram em 2000, mas a situação deve piorar em 2001 tanto pelo
acúmulo de amortizações já programadas como pelo novo aperto
de crédito no mercado internacional, que está levando à crise vários
países da periferia (Equador, Argentina, Turquia, África do Sul e
Coréia).
O crescimento do Investimento
Direto Estrangeiro (IDE) ajudou a
financiar as contas externas nos
últimos três anos, mas concentrou-se na aquisição de empresas públicas e privadas nacionais, sobretudo dos setores de serviços, que não
geram um dólar de receita, mas
pedem tarifas em dólar. Os principais negócios foram as operações
de privatização dos setores de
energia elétrica (US$ 34,3 bilhões)
e de telecomunicação (US$ 26,4 bilhões). O setor financeiro foi o terceiro grande negócio, com cerca de
US$ 18 bilhões de aquisições por
bancos estrangeiros. Estes estão entrando no mercado brasileiro não
apenas para "concorrer" com os
bancos nacionais mas também para garantir patrimonialmente as
relações de crédito que mantêm
com as grandes empresas, sobretudo as internacionais. Os multibancos europeus, que têm uma contabilidade mais flexível que os americanos, participaram das privatizações dando apoio colateral ao levantamento de fundos no exterior.
A partir da crise asiática, a capacidade de endividamento autônomo das empresas privadas diminuiu, atingindo o limite bruto de
US$ 140 bilhões. Dada a fragilidade externa do país e o apelo da liquidez internacional, as dívidas
privadas de boas empresas que
não possam ser roladas tendem a
ser convertidas em aquisições patrimoniais. Essa é a razão básica
pela qual as operações de investimento direto estrangeiro alcançaram, nos últimos três anos, montantes da ordem de US$ 30 bilhões
ao ano. Descontado o volume de
recursos externos que é retido pelas
empresas e bancos como saldo líquido no mercado interbancário, o
resto é vendido ao Banco Central
em troca de títulos da dívida pública com correção cambial, o que
agrega ao passivo externo um aumento dos passivos fiscais e de gastos correntes com juros internos,
além do risco cambial.
O aumento das necessidades de
financiamento externo em 2001 e
as pressões do FMI (a partir do caso argentino) para liberalizar e privatizar ainda mais devem desencadear uma nova onda de privatizações, das quais a do Banespa inicia a ofensiva na direção dos grandes bancos públicos. As intenções
sobre o setor financeiro público já
constam do memorando de Política Econômica de março de 1999,
emitido por ocasião das primeiras
revisões do acordo com o FMI. As
"recomendações" para a privatização dos bancos federais, em particular o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica Federal, começam a
circular nos relatórios das empresas de consultoria e na imprensa, e
a privatização em curso do resto
do setor elétrico deverá terminar
em 2001.
As operações de privatização
têm sido invocadas como um bom
negócio para abater a dívida pública interna, mas as evidências
são de sentido contrário (ver Aloysio Biondi, "O Brasil Privatizado",
Ed. Perseu Abramo, 1999). No caso
do Banespa, os números ainda estão na memória de todos. O valor
da operação de privatização do
Banespa foi equivalente a quase
US$ 3,5 bilhões. O Santander vendeu ao Banco Central US$ 2 bilhões (por sinal, o mesmo montante de créditos que tinha contra a
Telefónica de España quando da
privatização das teles), recebendo
em troca títulos da dívida pública
com correção cambial cujo rendimento é mais do que o dobro das
taxas européias. Dado o ágio do
leilão, ganhou ainda o direito de
remeter lucros sem pagar imposto,
ou incorporá-los ao seu patrimônio líquido por um montante de
R$ 5,8 bilhões de créditos tributários. Os créditos do Santander contra o Tesouro e o Banco Central,
no momento presente, são de cerca
de R$ 9,5 bilhões, superiores, portanto, ao valor do leilão em R$ 2,5
bilhões, o que representa aumento
dos compromissos do Tesouro, e
não "abatimento da dívida".
A esterilidade da avalanche de
investimento direto estrangeiro sobre o crescimento da economia pode ser avaliada pela taxa de investimento interno, que subiu apenas
2% ao longo de uma década (de
15,2%, em 1991, para 17,2%, em
1999). Os poucos investimentos diretos estrangeiros que implicaram
expansão de capacidade foram feitos nas indústrias química, automobilística e de equipamentos eletroeletrônicos e de telecomunicações, assim mesmo com abundante financiamento público. Esses investimentos geraram, porém, um
violento aumento de importações,
os três apresentando um déficit comercial da ordem de US$ 15 bilhões a US$ 16 bilhões ao ano, mesmo depois da desvalorização cambial.
Em resumo, estamos desnacionalizando a nossa economia e piorando o balanço de pagamentos, o
que agrava cada vez mais a vulnerabilidade externa do país. Não é à
toa que o exame, mesmo superficial, do que ocorreu nos últimos
anos com a economia brasileira dá
a qualquer analista cuja cabeça
ainda funcione, uma profunda
sensação de absurdo e irracionalidade.
Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
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