São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Desnacionalização e vulnerabilidade externa

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Na década de 90, as autoridades monetárias deixaram entrar, sem controle, montantes crescentes de capitais estrangeiros de todos os tipos. A liberalização comercial e financeira produziu um aumento brutal dos passivos externos do país, que dobraram nos últimos cinco anos, alcançando cerca de US$ 450 bilhões. A crise internacional de 1997 provocou uma fuga de capitais violenta, e a ameaça de colapso cambial, em fins de 1998, levou o país a recorrer ao FMI para obter um empréstimo de contingência de US$ 40 bilhões e restabelecer o financiamento externo, cujas necessidades globais alcançaram US$ 73 bilhões em 1999 (contra US$ 12,6 bilhões em 1994). Os compromissos externos diminuíram em 2000, mas a situação deve piorar em 2001 tanto pelo acúmulo de amortizações já programadas como pelo novo aperto de crédito no mercado internacional, que está levando à crise vários países da periferia (Equador, Argentina, Turquia, África do Sul e Coréia).
O crescimento do Investimento Direto Estrangeiro (IDE) ajudou a financiar as contas externas nos últimos três anos, mas concentrou-se na aquisição de empresas públicas e privadas nacionais, sobretudo dos setores de serviços, que não geram um dólar de receita, mas pedem tarifas em dólar. Os principais negócios foram as operações de privatização dos setores de energia elétrica (US$ 34,3 bilhões) e de telecomunicação (US$ 26,4 bilhões). O setor financeiro foi o terceiro grande negócio, com cerca de US$ 18 bilhões de aquisições por bancos estrangeiros. Estes estão entrando no mercado brasileiro não apenas para "concorrer" com os bancos nacionais mas também para garantir patrimonialmente as relações de crédito que mantêm com as grandes empresas, sobretudo as internacionais. Os multibancos europeus, que têm uma contabilidade mais flexível que os americanos, participaram das privatizações dando apoio colateral ao levantamento de fundos no exterior.
A partir da crise asiática, a capacidade de endividamento autônomo das empresas privadas diminuiu, atingindo o limite bruto de US$ 140 bilhões. Dada a fragilidade externa do país e o apelo da liquidez internacional, as dívidas privadas de boas empresas que não possam ser roladas tendem a ser convertidas em aquisições patrimoniais. Essa é a razão básica pela qual as operações de investimento direto estrangeiro alcançaram, nos últimos três anos, montantes da ordem de US$ 30 bilhões ao ano. Descontado o volume de recursos externos que é retido pelas empresas e bancos como saldo líquido no mercado interbancário, o resto é vendido ao Banco Central em troca de títulos da dívida pública com correção cambial, o que agrega ao passivo externo um aumento dos passivos fiscais e de gastos correntes com juros internos, além do risco cambial.
O aumento das necessidades de financiamento externo em 2001 e as pressões do FMI (a partir do caso argentino) para liberalizar e privatizar ainda mais devem desencadear uma nova onda de privatizações, das quais a do Banespa inicia a ofensiva na direção dos grandes bancos públicos. As intenções sobre o setor financeiro público já constam do memorando de Política Econômica de março de 1999, emitido por ocasião das primeiras revisões do acordo com o FMI. As "recomendações" para a privatização dos bancos federais, em particular o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, começam a circular nos relatórios das empresas de consultoria e na imprensa, e a privatização em curso do resto do setor elétrico deverá terminar em 2001.
As operações de privatização têm sido invocadas como um bom negócio para abater a dívida pública interna, mas as evidências são de sentido contrário (ver Aloysio Biondi, "O Brasil Privatizado", Ed. Perseu Abramo, 1999). No caso do Banespa, os números ainda estão na memória de todos. O valor da operação de privatização do Banespa foi equivalente a quase US$ 3,5 bilhões. O Santander vendeu ao Banco Central US$ 2 bilhões (por sinal, o mesmo montante de créditos que tinha contra a Telefónica de España quando da privatização das teles), recebendo em troca títulos da dívida pública com correção cambial cujo rendimento é mais do que o dobro das taxas européias. Dado o ágio do leilão, ganhou ainda o direito de remeter lucros sem pagar imposto, ou incorporá-los ao seu patrimônio líquido por um montante de R$ 5,8 bilhões de créditos tributários. Os créditos do Santander contra o Tesouro e o Banco Central, no momento presente, são de cerca de R$ 9,5 bilhões, superiores, portanto, ao valor do leilão em R$ 2,5 bilhões, o que representa aumento dos compromissos do Tesouro, e não "abatimento da dívida".
A esterilidade da avalanche de investimento direto estrangeiro sobre o crescimento da economia pode ser avaliada pela taxa de investimento interno, que subiu apenas 2% ao longo de uma década (de 15,2%, em 1991, para 17,2%, em 1999). Os poucos investimentos diretos estrangeiros que implicaram expansão de capacidade foram feitos nas indústrias química, automobilística e de equipamentos eletroeletrônicos e de telecomunicações, assim mesmo com abundante financiamento público. Esses investimentos geraram, porém, um violento aumento de importações, os três apresentando um déficit comercial da ordem de US$ 15 bilhões a US$ 16 bilhões ao ano, mesmo depois da desvalorização cambial.
Em resumo, estamos desnacionalizando a nossa economia e piorando o balanço de pagamentos, o que agrava cada vez mais a vulnerabilidade externa do país. Não é à toa que o exame, mesmo superficial, do que ocorreu nos últimos anos com a economia brasileira dá a qualquer analista cuja cabeça ainda funcione, uma profunda sensação de absurdo e irracionalidade.


Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@cdsid.com.br




Texto Anterior: Opinião econômica: Apelo
Próximo Texto: Luís Nassif: Noel Rosa, o cruel e o lírico
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.