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OPINIÃO ECONÔMICA
Apelo
RUBENS RICUPERO
O presidente dispõe de
oportunidade única para terminar bem o que começou mal. O
Quinto Centenário, que nos deixou na boca travo amargo, pode
ainda converter-se em ocasião para unir o povo brasileiro e torná-lo
mais fraterno e solidário. Basta
que, em nome da nação, o presidente reconheça os crimes e as violências cometidos contra índios,
africanos e seus descendentes ao
longo da história, peça perdão às
vítimas e assuma o compromisso
coletivo de reparar as consequências.
A oportunidade foi criada pela
reunião preparatória da Conferência Mundial Contra o Racismo,
que começa em Santiago do Chile
em 4 de dezembro (a Conferência
será na África do Sul, em 2001). O
Brasil teria tido títulos para sediar
ambas, como fizemos com êxito na
Eco-92. Infelizmente o medo e a timidez, sempre maus conselheiros,
impediram que nos coubesse tal
honra.
Digo e afirmo que nossos títulos
são melhores não por crer no mito
da democracia racial ou porque vivamos no seio de Abraão. Saltam
aos olhos nossos persistentes problemas de desigualdade e não preciso repetir Florestan Fernandes,
que dizia: "O brasileiro é o sujeito
que só tem um preconceito: o de
não ter preconceito".
Sem embargo, também é verdade que as dimensões e características da singular experiência brasileira de mestiçagem de gentes e
culturas têm pouquíssimos paralelos no mundo e um ou outro aspecto dessa experiência humana mereceria ser mais bem conhecido.
Não os resultados sociais concretos, que só existem em potência,
mas o que pertence ao domínio dos
símbolos, dos valores íntimos, das
atitudes.
Pena que desperdiçamos a oportunidade da Conferência para elevar a conscientização dos problemas do racismo e da discriminação e encarar de frente nossa responsabilidade pelo passado. Referi-me ao presidente, não ao governo, ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal, por ser caso que depende apenas da autoridade moral do chefe de Estado, não de
emendas à Constituição, novas leis
ou sentença judicial. É decisão que
se parece à "purificação da memória" efetuada por João Paulo 2º, ao
pedir perdão pelos pecados não só
da Igreja Católica, mas de todo o
cristianismo.
O documento preparatório insiste na necessidade de reparação,
conceito que abrange desde a compensação pecuniária, em casos nos
quais existam sobreviventes, até a
satisfação moral, com reconhecimento da responsabilidade do Estado e o compromisso de evitar a
repetição das violações. Admite a
responsabilidade histórica dos Estados pela escravização de índios e
africanos e conclama a Conferência a declarar "crimes contra a humanidade" o tráfico e a escravidão, solicitando a reparação e
compensação moral das vítimas e
seus descendentes.
O tema é polêmico e polarizou
em Genebra os africanos, de um
lado, e os ocidentais, do outro. Seria inconcebível e monstruoso que
o Brasil escolhesse o partido que
tenta fugir à responsabilidade pelo
colonialismo e o imperialismo, o
tráfico de escravos e outras atrocidades.
Vejamos por quê. Do total de 11
milhões e 300 mil africanos desembarcados (sem contar os milhões
de martirizados na captura e travessia), o Brasil teve a cota do leão,
mais de 4 milhões (comparados
aos 530 mil dos EUA): dois de cada
cinco. Mesmo depois de independente e, portanto, responsável perante o Direito Internacional, o governo continuou cúmplice do tráfico por quase 20 anos, apesar de
obrigado por tratado a acabar
com ele em 1831. Quando chegou
tardiamente a Abolição, a única
compensação que se discutiu era
para os algozes, não as vítimas. E
não se venha dizer que eram outros os valores de então e não se tinha consciência do mal que se fazia. Sem precisar recuar aos jesuítas, que pagaram com a expulsão
a defesa dos índios, foram inúmeros os que condenaram a escravidão, a começar pelo Patriarca da
Independência.
A reparação deve principiar pela
obra moral do reconhecimento da
dignidade das vítimas, realçando
pela educação e os meios de comunicação a contribuição indígena e
africana. Será preciso completar a
defesa das reservas indígenas e das
terras dos quilombos. O esforço
principal será resgatar da miséria
os milhões de humilhados e ofendidos que, entre nós, coincidem, quase perfeitamente, com o universo
dos perdedores da nossa história,
os descendentes da escravidão.
Não se tratando de minoria, como
nos EUA, o melhor é ajudar todos
os marginalizados, sem distinção
de cor, a que se ajudem a si próprios com programa maciço de
renda mínima, acoplado à saúde e
à bolsa-escola até a universidade
para os merecedores. A prioridade
é resgatar a dívida com nosso povo, mas isso não é incompatível
com gestos para ajudar os africanos, como o bem-vindo perdão da
dívida moçambicana e a cooperação técnica com outros povos de
língua portuguesa ou não da África.
Nada disso é novidade para o
presidente, autor de obra importante sobre a escravidão no Sul do
país e cujos sentimentos, muitas
vezes exprimidos, coincidem com
os destes comentários. Estou certo
de que ele se engrandecerá a si
mesmo e a todo o país encerrando
com a chave de ouro da reconciliação da memória o ano do Quinto
Centenário. Se, além das já citadas, ainda faltasse razão para isso,
bastaria a que foi dada pelo Barão
do Rio Branco, ao explicar por que
não aceitou compensação pela correção da fronteira injusta contra o
Uruguai: "É porque este testemunho do nosso amor ao direito (e à
justiça, acrescentaria eu) fica bem
ao Brasil e é uma ação digna do
povo brasileiro".
Rubens Ricupero, 63, secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento)
e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo
da Crise" (editora "Revan). Escreve aos
domingos nesta coluna.
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