São Paulo, Quinta-feira, 04 de Fevereiro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

O Congresso aprova essas barbaridades?

ALOYSIO BIONDI

A crise do real representa uma grande oportunidade para a população brasileira, com o Congresso Nacional e entidades de classe à frente, refletir sobre as inacreditáveis aberrações que continuam a ser praticadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso e passar a combatê-las: eis alguns fatos recentes e as respectivas reflexões iniciais:
Cortes - Em 1998, o Orçamento federal destinou R$ 250 milhões para empréstimos a ser usados, por milhões de famílias de agricultores, na compra de sementes (de arroz, feijão, algodão, milho, trigo, soja etc.) destinadas ao plantio. Para 1999, a equipe cortou totalmente, não deixou nenhum tostão para esses financiamentos. Vale dizer: milhões de pequenos produtores não terão dinheiro nem mesmo para comprar sementes. Assim, as colheitas do próximo ano, 2000, estão comprometidas.
Reflexão: o Brasil está importando arroz, feijão, trigo, milho, algodão porque a equipe FHC massacrou a agricultura nos últimos anos. Agora, com a explosão do real, o país precisa de grandes safras, para reduzir as importações, poupando dólares, e aumentar as exportações, obtendo dólares (sem falar no combate à inflação). O governo deveria ter lançado um programa de emergência para a agricultura, para ampliar o plantio -e, assim, criar empregos, acumular dólares, combater a recessão, aumentar a arrecadação. Mas o governo FHC não muda, nunca...
Cacau - Em meados de janeiro, uma data histórica: desembarcou, na Bahia, o primeiro carregamento de cacau, importado da África, matéria-prima para as fábricas nacionais de chocolate. Motivo: a produção brasileira despencou, por falta de apoio, o que levou os lavradores, sem dinheiro, a não combater pragas, como a "vassoura de bruxa", que destruíram plantações. Em meados do ano passado, o governo FHC lançou solenemente um programa, destinando R$ 300 milhões à recuperação do setor. Quanto foi liberado, até janeiro? Algo como R$ 125. Milhões? Não. Mil.
Reflexão: o presidente do Congresso Nacional, senador Antonio Carlos Magalhães, acredita que o governo FHC merece apoio incondicional?
Privilégio - No final de dezembro, o banco estatal BNDES concedeu empréstimo de R$ 220 milhões a um grupo empresarial que "comprou" uma das ferrovias estatais. Dias antes, esse grupo havia participado de um consórcio que "comprou" a Fepasa, a estatal paulista, para pagar em 30 anos, com prestações trimestrais de R$ 116 mil (mil, mesmo). A "entrada", paga à vista, foi de 20% do preço, ou míseros R$ 60 milhões. Esse grupo empresarial, portanto, desembolsou a parte que lhe cabia, ou 10%, isto é, R$ 6 milhões. Quer dizer: privatização do governo FHC é sempre assim: o grupo "comprador" finge que paga ninharias como essa de R$ 6 milhões e, dias depois, recebe fortunas como esses R$ 220 milhões do BNDES.
Reflexão: o governo FHC, no falso "ajuste fiscal", corta R$ 250 milhões para a compra de sementes -que, além disso, seriam devolvidos em poucos meses, após a nova colheita. E dá R$ 220 milhões a um único grupo empresarial. A juros baixíssimos, especiais. E a longuíssimo prazo.
Exportações - O BNDES faz financiamentos a grandes grupos exportadores, com taxas de juro iguais às do mercado mundial. Quem paga a diferença em relação aos juros cobrados no mercado brasileiro? O Tesouro. O governo. Subsídios para grandes grupos. Agora, o governo anuncia "apoio" especial para estimular pequenas e médias empresas a exportar. Quais as taxas de juro? TR mais 12% ao ano. Juros escorchantes. Impossível concorrer lá fora.
Telefones - Essa distorção é de arrepiar qualquer um. O governo decidiu que em todas as regiões do país devem existir duas empresas de telefonia: a estatal antiga privatizada (como a Telesp, no caso de São Paulo) mais uma outra, que deverá manter a concorrência e por isso mesmo chamada de "espelho".
O leilão para escolher as "empresas-espelho" foi realizado há semanas. O governo não fixou um "preço mínimo" para a "compra" do direito de explorar o serviço, isto é, a concessão. Mas havia um "preço de referência", de R$ 1,2 bilhão, no total, para todas as regiões do país. O leilão rendeu apenas R$ 120 milhões, ou 10% do previsto, para o Tesouro. O governo jogou no lixo, no mínimo, no mínimo, a porcaria de R$ 1 bilhão.
O diretor de um grupo multinacional exultava, com um dos "melhores negócios do mundo", segundo ele, em entrevista à "Gazeta Mercantil". Pudera: sua empresa ficou com a região Leste do país, incluindo o Rio de Janeiro, com 85 milhões de habitantes. Vai "pagar" algo como R$ 40 milhões. Ou, mais exatamente, o equivalente a 58 centavos (centavos, mesmo) por habitante/futuro cliente.
O próprio jornal lembrava que, no leilão para a "empresa-espelho" da telefonia celular na Grande São Paulo, o custo para a vencedora ficou em algo como R$ 170 por habitante, cliente. Ou 30 vezes o "preço" que o Tesouro receberá agora...
Reflexão: o governo FHC está aproveitando a crise para "torrar" ainda mais escandalosamente patrimônio e fontes de renda da sociedade.

Com o Congresso
O "ajuste fiscal" do governo FHC é a manutenção das distorções dos últimos anos. Cortes, aumentos de impostos atingem apenas milhões de agricultores, milhões de pequenos e médios empresários, milhões de brasileiros da classe média e povão. Os privilégios aos grandes grupos se repetem, à custa de toda a sociedade. Há algo de esdrúxulo na política de empréstimos do BNDES, que merece um estudo aprofundado do Congresso, verificando-se até mesmo o cronograma de desembolso dos empréstimos -para observar se bilhões de reais não estão sendo entregues a grandes grupos para que eles apliquem na especulação com o dólar. Mais ainda: para a reconstrução da economia nacional, o Congresso deve exigir que o governo FHC coloque o BNDES, Banco do Brasil, bancos estatais à disposição de centenas de milhares ou milhões de empresários, e não de poucos grupos.
O ministro Malan insiste em denegrir o Congresso, responsabilizando-o pela "disparada" do dólar, provocada, segundo ele, pelo atraso na aprovação do ajuste fiscal. O Congresso precisa abandonar a atitude passiva, suicida, e defender-se. É fácil provar, para a opinião pública, que a queda do real era "pressentida" havia meses pelos grandes grupos e bancos.
Basta o Congresso fazer dois levantamentos:
a) Um, no próprio Banco Central, identificando as empresas que, desde setembro, pagaram antecipadamente empréstimos no exterior, para fugir da futura desvalorização;
b) Outro, na Bolsa de Mercadorias & Futuros, para identificar empresas e bancos que compraram (contratos de) dólar à larga, para lucrar bilhões e bilhões com o ataque ao real.


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



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