São Paulo, quinta-feira, 04 de março de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O Brasil deve apoiar Argentina

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A argentina atravessa um período crítico nas suas relações com o FMI e os credores. Precisa do apoio do Brasil. E o Brasil não deve se omitir.
A parceria com a Argentina tem um significado estratégico para o Brasil, e vice-versa. Entre argentinos e brasileiros há muitas convergências e semelhanças. Temos também diferenças marcantes -inclusive de temperamento. Mas até as diferenças nos aproximam, pois constituem motivos de curiosidade e interesse.
O brasileiro talvez seja um dos povos mais pragmáticos do mundo, com tudo que isso tem de positivo e negativo. Desse pragmatismo resulta, entre outras coisas, a nossa célebre tendência à conciliação. Na Argentina, o pragmatismo é mercadoria muito escassa, e a confrontação, bem mais comum do que a conciliação.
Os rompantes argentinos exasperam os brasileiros, até mesmo os mais temperamentais. Certa vez, Maria da Conceição Tavares, espantada com alguma extravagância da Argentina, exclamou com aquela veemência que lhe é peculiar: "Esses argentinos são uns românticos alemães!".
Não faz mal. Entre o "romantismo alemão" dos argentinos e o nosso pragmatismo conciliador encontraremos -quem sabe?- um ponto intermediário benéfico para os dois países.
Faço essas considerações a propósito da nova rodada de embates entre o governo Kirchner, os credores externos e o FMI. Nesta semana e na próxima, temos três acontecimentos importantes.
Primeiro: em Washington, a direção do FMI começou ontem a apreciação da segunda revisão do acordo com a Argentina. Dessa revisão depende o desembolso da próxima parcela do empréstimo negociado no ano passado. A decisão pode demorar.
Segundo: na próxima terça-feira, dia 9, vencem US$ 3,1 bilhões de uma dívida da Argentina com o FMI. O governo Kirchner avisou que adiará o pagamento até receber uma indicação clara de que a segunda revisão do acordo será aprovada pelo FMI. A Argentina conta com o desembolso vinculado a essa revisão para evitar que o pesado pagamento de terça-feira provoque a corrosão das reservas internacionais do país.
Terceiro: na quarta-feira, dia 10, Kirchner chega a São Paulo para um encontro com Lula. A finalidade é definir uma abordagem comum para as relações com os organismos financeiros internacionais, dando seqüência ao entendimento a que chegaram os dois presidentes em recente encontro em Caracas.
Cenário armado, portanto. Na Argentina, é o tema do momento -com riscos e abismos para "romântico alemão" nenhum botar defeito. No Brasil, o assunto ainda não despertou a atenção da opinião pública.
O problema central, como se sabe, é a renegociação da dívida argentina com credores privados. O Fundo está sendo utilizado pelos países desenvolvidos como instrumento para pressionar a Argentina a fazer propostas mais flexíveis aos detentores dos títulos em moratória. Por enquanto, o governo argentino vem resistindo com firmeza -ameaça estender a moratória ao FMI, se esse organismo continuar funcionando como agência de cobrança de dívidas privadas. Um argumento que reforça a posição argentina, ainda não contestado pelo Fundo, é que todas as metas de política econômica do acordo foram cumpridas, o que justificaria uma rápida aprovação da segunda revisão.
Enquanto Kirchner lança os seus desafios e enfrenta ruidosamente os credores e o FMI, Lula faz o seguinte gesto, tipicamente brasileiro: convida o diretor-gerente do Fundo, Horst Köhler (um alemão nada romântico), para um churrasco em Brasília...
Churrasco na Granja do Torto e "Crepúsculo dos Deuses" em Buenos Aires. Durante o tal churrasco, no último domingo, a Argentina foi certamente um tema. Anteontem, Lula deu outro passo: telefonou para Bush pedindo que o caso argentino seja reconsiderado. É preciso levar em conta, teria dito o presidente brasileiro, que o governo Kirchner vem atuando com seriedade e responsabilidade no manejo das contas públicas.
Parece que o governo Lula resolveu não repetir o vexame que deu na crise anterior entre o governo Kirchner e o FMI, em setembro do ano passado. Na hora H, o presidente brasileiro se fez de desentendido e praticamente sumiu do mapa. A Argentina acabou levando a melhor naquele confronto com o Fundo, mas a omissão de Lula em momento tão crítico desgastou a sua relação com Kirchner e gerou dúvidas sobre a solidez da aliança entre os dois governos.
Agora, o Brasil está se antecipando aos fatos e vem se mostrando mais presente e ativo, sem fugir ao seu estilo conciliador. Veremos nos próximos dias se o apoio brasileiro à Argentina ficará a altura dos acontecimentos.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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