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OPINIÃO ECONÔMICA
Complexo de Cafuringa
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Meus amigos, realmente não é
fácil ser brasileiro. A lista de decepções que acumulamos nos últimos 20 anos já era bastante extensa. Agora, o Plano Real
ameaça integrá-la em posição
de grande destaque.
Ameaça? Muitos já dão o fim
do Real como favas contadas.
Talvez tenham razão. O colapso
cambial começa a desorganizar
tudo. Uma desvalorização da
ordem de 20% a 30% teria sido
possível sem quebra da estabilidade monetária interna. E era o
que precisávamos para ajustar a
balança comercial e o balanço
de pagamentos em conta corrente.
Mas uma desvalorização de
60%, 70% e, agora, de quase
80% traz um risco muito alto de
volta da inflação e retomada da
indexação.
Dá vontade de sentar no meio-fio e chorar lágrimas de esguicho, como diria o Nelson Rodrigues. Estamos jogando pela janela um longo trabalho de desindexação, iniciado brilhantemente com a introdução da
URV, em março de 1994.
É claro que o processo posterior de estabilização monetária
esteve apoiado em falsas premissas e apostas temerárias. Sobre esse ponto, formou-se (tardiamente) um virtual consenso.
Mas permanece o fato de que,
no final do ano passado, a inflação brasileira estava convergindo para os níveis de inflação do
Primeiro Mundo. Falava-se até
-lembram?- em risco de deflação no Brasil! Em certo sentido, estamos morrendo na praia.
Toda essa história melancólica me faz pensar, de novo, num
jogador do Fluminense dos anos
70. Vocês lembram do Cafuringa? Já falei dele nesta coluna e
também a propósito do Plano
Real.
Na década de 70, apareceu no
Fluminense um extraordinário
ponta-direita, um crioulo retinto, que foi um dos maiores dribladores da história do futebol
brasileiro. Lembrava o Garrincha. A sua especialidade era estraçalhar as defesas adversárias
com dribles desconcertantes,
imprevisíveis.
Mas o Cafuringa tinha um
problema grave: por algum motivo insondável, não conseguia,
simplesmente não conseguia
marcar gol. O sujeito fazia tudo,
absolutamente tudo, mas chegava à cara do gol e, Deus sabe por
que, sempre desperdiçava, às vezes de forma bisonha. Passava
campeonatos inteiros sem emplacar um mísero e solitário gol.
Era um drama.
Com o passar do tempo, a história foi ficando célebre. A cada
jogo do Fluminense a expectativa era sempre a mesma: será que
hoje o Cafuringa consegue desencantar? Toda a torcida do
Fluminense se identificava com
o calvário do jogador.
Até torcedores de outros times
se envolviam com o problema.
Mas acontecia sempre a mesma
coisa: uma série infindável de
jogadas irretocáveis seguidas de
finalizações medíocres. Todos
percebiam o óbvio: o Cafuringa
desenvolvera um trauma, um
complexo aparentemente insolúvel. Quando se aproximava
das traves do adversário, começava a suar frio e tremia da cabeça às chuteiras. E a expectativa geral inibia ainda mais o jogador.
No seu sofrimento silencioso, o
Cafuringa era a própria imagem
do povo brasileiro.
Ah, mas não há sofrimento
que sempre dure. Um dia, fui ao
Maracanã assistir a um jogo importante do Fluminense. Estádio lotado, logo no começo da
partida, o Cafuringa fez uma
das suas: driblou todo mundo e
isolou a bola. Toda a torcida do
Fluminense (e até a torcida do
outro time) levantava os braços
para o céu (e Deus, lá de cima,
respondia: calma, calma).
Aí aconteceu o grande momento. Pela enésima vez, o Cafuringa fez uma linda jogada e
atravessou a defesa adversária
inteirinha. O goleiro saiu do gol
para fechar o ângulo, só que,
dessa vez, o nosso ponta-direita
colocou a bola exatamente no
fundo das redes!
Vocês não imaginam a explosão. Foi uma coisa impressionante. É impossível descrever a
emoção que tomou conta do
Maracanã naquele instante. Foi
tão forte, mas tão forte que, até
hoje, mais de 20 anos depois, eu
me emociono de novo ao relembrá-la. Quando o Cafuringa correu para o lado das arquibancadas em que estava a torcida do
Fluminense e se ajoelhou, o estádio inteiro nadava em lágrimas.
A pergunta que sempre me faço é a seguinte: quando é que vai
chegar esse dia para o Brasil?
Paulo Nogueira Batista Jr., 43, economista e
professor da Fundação Getúlio Vargas, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net
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