São Paulo, Quinta-feira, 04 de Março de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Complexo de Cafuringa

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Meus amigos, realmente não é fácil ser brasileiro. A lista de decepções que acumulamos nos últimos 20 anos já era bastante extensa. Agora, o Plano Real ameaça integrá-la em posição de grande destaque.
Ameaça? Muitos já dão o fim do Real como favas contadas. Talvez tenham razão. O colapso cambial começa a desorganizar tudo. Uma desvalorização da ordem de 20% a 30% teria sido possível sem quebra da estabilidade monetária interna. E era o que precisávamos para ajustar a balança comercial e o balanço de pagamentos em conta corrente.
Mas uma desvalorização de 60%, 70% e, agora, de quase 80% traz um risco muito alto de volta da inflação e retomada da indexação.
Dá vontade de sentar no meio-fio e chorar lágrimas de esguicho, como diria o Nelson Rodrigues. Estamos jogando pela janela um longo trabalho de desindexação, iniciado brilhantemente com a introdução da URV, em março de 1994.
É claro que o processo posterior de estabilização monetária esteve apoiado em falsas premissas e apostas temerárias. Sobre esse ponto, formou-se (tardiamente) um virtual consenso.
Mas permanece o fato de que, no final do ano passado, a inflação brasileira estava convergindo para os níveis de inflação do Primeiro Mundo. Falava-se até -lembram?- em risco de deflação no Brasil! Em certo sentido, estamos morrendo na praia.
Toda essa história melancólica me faz pensar, de novo, num jogador do Fluminense dos anos 70. Vocês lembram do Cafuringa? Já falei dele nesta coluna e também a propósito do Plano Real.
Na década de 70, apareceu no Fluminense um extraordinário ponta-direita, um crioulo retinto, que foi um dos maiores dribladores da história do futebol brasileiro. Lembrava o Garrincha. A sua especialidade era estraçalhar as defesas adversárias com dribles desconcertantes, imprevisíveis.
Mas o Cafuringa tinha um problema grave: por algum motivo insondável, não conseguia, simplesmente não conseguia marcar gol. O sujeito fazia tudo, absolutamente tudo, mas chegava à cara do gol e, Deus sabe por que, sempre desperdiçava, às vezes de forma bisonha. Passava campeonatos inteiros sem emplacar um mísero e solitário gol. Era um drama.
Com o passar do tempo, a história foi ficando célebre. A cada jogo do Fluminense a expectativa era sempre a mesma: será que hoje o Cafuringa consegue desencantar? Toda a torcida do Fluminense se identificava com o calvário do jogador.
Até torcedores de outros times se envolviam com o problema. Mas acontecia sempre a mesma coisa: uma série infindável de jogadas irretocáveis seguidas de finalizações medíocres. Todos percebiam o óbvio: o Cafuringa desenvolvera um trauma, um complexo aparentemente insolúvel. Quando se aproximava das traves do adversário, começava a suar frio e tremia da cabeça às chuteiras. E a expectativa geral inibia ainda mais o jogador.
No seu sofrimento silencioso, o Cafuringa era a própria imagem do povo brasileiro.
Ah, mas não há sofrimento que sempre dure. Um dia, fui ao Maracanã assistir a um jogo importante do Fluminense. Estádio lotado, logo no começo da partida, o Cafuringa fez uma das suas: driblou todo mundo e isolou a bola. Toda a torcida do Fluminense (e até a torcida do outro time) levantava os braços para o céu (e Deus, lá de cima, respondia: calma, calma).
Aí aconteceu o grande momento. Pela enésima vez, o Cafuringa fez uma linda jogada e atravessou a defesa adversária inteirinha. O goleiro saiu do gol para fechar o ângulo, só que, dessa vez, o nosso ponta-direita colocou a bola exatamente no fundo das redes!
Vocês não imaginam a explosão. Foi uma coisa impressionante. É impossível descrever a emoção que tomou conta do Maracanã naquele instante. Foi tão forte, mas tão forte que, até hoje, mais de 20 anos depois, eu me emociono de novo ao relembrá-la. Quando o Cafuringa correu para o lado das arquibancadas em que estava a torcida do Fluminense e se ajoelhou, o estádio inteiro nadava em lágrimas.
A pergunta que sempre me faço é a seguinte: quando é que vai chegar esse dia para o Brasil?


Paulo Nogueira Batista Jr., 43, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net



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