São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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"Milagre" da Argentina pode continuar

Economistas prevêem que, em 2007, o país terá crescido quase o mesmo que o Brasil desde 1998, apesar da recessão

Pequena necessidade de financiamento externo e peso desvalorizado são as apostas para continuidade do ciclo de crescimento


RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL

O presidente argentino, Néstor Kirchner, comemorou há dez dias os três anos de governo com 80% de aprovação. Sua ministra da Economia, Felisa Miceli, anunciou que o país continuará a crescer "não menos que 5% ao ano" nos próximos anos. Em 2006, 8%.
Depois de ter crescido três anos consecutivos a 9% ao ano, pode parecer exagerada a previsão da ministra. Só que mais de dez economistas influentes do país ouvidos pela reportagem da Folha acreditam que o crescimento ainda tem fôlego por mais alguns anos.
Se crescer os previstos 8% neste ano e repetir a performance em 2007, o país já terá crescido o mesmo que o Brasil desde 1998, mesmo contando a recessão que reduziu em 20% a economia do país entre 1998 e 2002. Até o final deste ano, a economia brasileira terá crescido 22,1% em relação a 1998. A Argentina, 18,6%. Uma amostra da incrível recuperação argentina -ou como o crescimento brasileiro foi modesto no mesmo período.

Receitas expansivas
Para os especialistas, a Argentina inovou ao seguir receitas mais expansivas que as pregadas pelo FMI, ganhou competitividade em uma ótima conjuntura internacional e soube renegociar sua dívida externa, entre outros acertos.
Mas a dupla responsável pelas ousadias, o ex-ministro da Economia Roberto Lavagna e o ex-presidente do Banco Central Alfonso Prat-Gay, não está mais no cargo -ambos saíram em atritos com o presidente.
Críticos do estilo Kirchner de governar, os economistas também apontam falhas do sistema, como a crescente inflação, uma provável crise energética e a falta de clima para atrair mais investimentos estrangeiros.
"Kirchner faz muita coisa errada, mas com a economia crescendo desse jeito, fica difícil criticar", diz o economista Carlos Melconian, um dos maiores consultores do país. "Ele é o Dunga da seleção brasileira de 1994. Não joga bonito, mas venceu a Copa".

Milagres e tombos
A Argentina já passou por milagres parecidos, depois de tombos igualmente traumáticos. Viveu anos de ouro com Perón, depois do colapso de suas exportações durante a 2ª Guerra; cresceu a 7% ao ano durante seis anos do governo de Carlos Menem, depois de uma hiperinflação de quase 6.000% no último ano do presidente Raúl Alfonsín.
"Ainda assim, esta é a recuperação mais extraordinária da história do país", diz o economista Miguel Kiguel, da consultora Econviews. Abaixo, os principais pontos que explicam o "milagre".

Conjuntura interna
Cerca de 45% das exportações argentinas são formadas pelo petróleo e a soja e seus derivados. Com a alta dos preços internacionais das principais commodities argentinas e a competitividade graças a desvalorização do peso, houve um enorme boom em todos os setores exportadores.
O governo criou em 2003 um imposto às exportações, que varia de 5 a 20%, de acordo com o produto. O novo imposto já é responsável por quase 10% da arrecadação do país.

Peso subvalorizado
Para continuar tão competitivo, frear as importações e continuar a cobrar o imposto às exportações, o governo mantém um peso desvalorizado, estacionado a 3,10 pesos por dólar. "Até 2001, nossos supermercados estavam cheios de produtos importados. Agora, aparecem novos produtos argentinos semanalmente", diz o economista Carlos Hourbeight, gerente do Copérnico Hedge Fund. O peso que a indústria representa no PIB (Produto Interno Bruto) argentino, que era de 17% em 2001, pulou para 25% atualmente.
"Como o país recebe muitos dólares, o peso deveria se valorizar. O Banco Central os compra, usando o cofre cheio e emitindo títulos da dívida. A aposta funciona", afirma Hourbeigt.

Recuperação interna
Depois de quatro anos de recessão (1998-2002), de consumo reprimido, os argentinos saíram às compras. Trocaram o carro (as vendas de automóveis dobraram em três anos), reformaram a casa, compraram bens que não viam há anos. "Como a taxa de juros a 30 dias é de 6,5% anualizada, ninguém quer economizar. A política é pró-investimento, pró-gasto. Por isso, a inflação não fica quieta", diz o economista Carlos Melconian.
Com o boom industrial e de todas as áreas exportadoras, houve a criação de 2,5 milhões de novos empregos nos últimos três anos. Mais gente para a nova onda de consumo.

Renegociação
O estilo agressivo de Kirchner funcionou durante a renegociação da dívida externa. 75% da dívida foi renegociada -cada dólar por um título de 0,35 centavos da moeda, e os prazos foram esticados. Desde o calote na dívida, no final de 2001, o país virou um pária internacional. Ainda assim, o "default" reduziu o peso dos juros que o governo paga anualmente, de 3,8% do PIB em 2001, para 1,7% em 2006. No Brasil, o número chega a 8%.

Arrecadação
Em 2001, a Argentina arrecadava 45,4 bilhões de pesos e gastava 49 bilhões. No ano passado, a arrecadação atingiu o recorde de 119,2 bilhões, e gastou 107 bi. O governo pôde gastar muito em novas obras e em programas sociais, sem comprometer o superávit fiscal.


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