São Paulo, quinta-feira, 04 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Duhalde fez o inevitável, mas ainda assim não resolve a situação do país

DO ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

É tão dramática a situação argentina que nem ao fazer o que o público e o bom senso pediam (antecipar as eleições do próximo ano), o presidente Eduardo Duhalde conseguiu aplausos unânimes.
"No meio de um terremoto, o que se discute é como sustentar a casa, não o que se fará em março", reagiu, por exemplo, a deputada Elisa "Lilita" Carrió (da Ari, Ação para uma Argentina de Iguais), primeira colocada em todas as pesquisas para a sucessão presidencial (mas com apenas 17% das intenções de voto, pouco mais ou menos).
A deputada põe o foco em um dos problemas da decisão presidencial de trazer para março de 2003 a eleição que seria apenas em setembro do mesmo ano: a crise é tão feia que o governo pode não resistir nem mesmo aos 11 meses que ainda lhe restam até entregar o poder, em maio do ano que vem.
Afinal, Duhalde antecipou em sete meses a transferência da faixa presidencial, prevista originalmente para dezembro.
"É o mesmo prazo em que a Argentina teve cinco presidentes, quatro ministros da Economia e outros tantos presidentes do Banco Central", lembra, para o jornal "La Nación", Rosendo Fraga, um dos mais reputados analistas políticos do país.
É uma maneira de dizer que tudo pode acontecer até março, como tudo podia acontecer, antes, até setembro.

Eternidade
"Para uma sociedade sufocada, que cada dia vê cair mais gente na pobreza, 11 meses é uma eternidade", reforça o filósofo Enrique Valiente Noailles, referindo-se ao prazo entre o anúncio da antecipação do pleito e a posse do novo presidente.
O ainda longo prazo até a mudança de governo não é, de todo modo, o único senão que a atitude de Duhalde mereceu. O próprio Noailles aponta outra: "Com uma classe política desmoralizada, eleições só presidenciais são insuficientes".
De fato, o clamor da rua, que derrubou dois presidentes em curto intervalo de tempo no ano passado e no início deste ano, é claro: "Que se vayan todos". O público quer eleger toda uma nova classe dirigente.
Aí, entra-se em um beco sem saída. O eleitor argentino está descontente com todos os políticos, do Executivo e do Legislativo, para não mencionar o desgaste também do Poder Judiciário, mas não estão à vista nomes novos que despertem entusiasmo.
É ilustrativo desse deserto o fato de que um trotskista (Luis Zamora) esteja bem colocado nas pesquisas, com algo em torno de 10% das intenções de voto, quando o trotskismo é extremamente minoritário em qualquer lugar do mundo.
A melhor qualidade que os eleitores apontam em Zamora não é, em todo o caso, o fato de ser trotskista, mas o de ser honesto.
É também essa característica que alavanca as pretensões de "Lilita" Carrió e do governador de Santa Fé, o ex-piloto de Fórmula 1 Carlos Reutemann.
Trata-se de um dos raros líderes peronistas (o partido de Duhalde) sobre o qual não há acusações de corrupção.
É óbvio que ser limpo é uma qualidade necessária para governar um país, mas está longe de ser suficiente para uma Argentina que vive a maior crise de sua história, que viu 329.500 pessoas perderem o emprego só no primeiro semestre do ano e que vê, a cada mês, desde outubro, 700 mil pessoas se tornarem novos pobres, de acordo com os dados do estudo realizado pela CTA (Central de Trabalhadores da Argentina).

Nível haitiano
Claudio Lozano, o economista autor do estudo, diz que, mantido o quadro atual, no fim do ano 65,1% da população (ou 23 milhões de pessoas) estarão abaixo da linha de pobreza -um nível boliviano ou haitiano em um país que há 60 anos era um dos sete mais ricos do mundo.
Fica claro que março, a nova data da eleição, é longe demais para a bomba de tempo armada para Duhalde pela inédita combinação de câmbio fixo, confisco dos depósitos bancários e recessão que já vai para o quarto ano.
Sem tempo, legitimidade ou competência para desarmar a bomba, não restava ao presidente muito mais do que o gesto de antecipar a saída, gesto que o matutino "Página 12" tratou, na manchete de capa, com o humor habitual: "Não empurrem que já nos vamos". (CLÓVIS ROSSI)


Texto Anterior: Anúncio da eleição antecipada pega até ministro de surpresa
Próximo Texto: Buenos Aires fica barata com peso fraco
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.