São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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EM TRANSE

Para especialista, negociações do Brasil misturam elementos de acordos feitos com Rússia e Coréia do Sul no passado

Novo acordo deve abrir precedente no FMI

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

Ditadas pela crise econômica e pelo compasso eleitoral, as negociações entre o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o governo brasileiro deverão abrir um precedente na instituição e serão lembradas como uma espécie de mistura entre o caso sul-coreano de 1997 e o da Rússia em 1996.
Essa é a opinião de Paul Blustein, 50, jornalista do "The Washington Post". Blustein escreveu o livro "The Chastening - Inside the Crisis that Rocked the Global Financial System and Humbled the IMF" (O Castigo - Por Dentro da Crise que Abalou o Sistema Financeiro e Humilhou o FMI), ainda não lançado no Brasil. O livro trata do fracasso dos programas de ajuste do Fundo durante as crises na década de 90.
Em fevereiro de 1996, cinco meses antes das eleições presidenciais que derrotaram os comunistas e reelegeram o presidente Boris Ieltsin, o FMI fechou com o Kremlin um programa de ajuda no valor de US$ 10 bilhões, com duração de três ano, sem pedir autorização nem sinalização aos candidatos de oposição. Ieltsin era o candidato da Casa Branca e acabou ganhando as eleições.
Em dezembro de 1997, o FMI e o governo norte-americano só autorizaram o novo programa na Coréia do Sul depois que o principal candidato de oposição, Kim Dae Jung, disse que apoiaria os termos do novo acordo. Dae Jung era o candidato da Casa Branca e ganhou as eleições.
"O caso brasileiro vai ficar entre os dois. O que está sendo feito é muito inteligente. Está havendo uma concordância vaga dos candidatos, e, com base nela, o Fundo está avançando nas negociações", disse Blustein, em entrevista à Folha. "Se, depois, os candidatos não quiserem aceitar o acordo, serão culpados pelo colapso dos mercados. É uma espécie de chantagem, muito refinada."
Leia a seguir os principais trechos das entrevista:

Folha - Qual precedente do FMI lhe vem à cabeça quando analisamos as atuais negociações do Fundo com o governo brasileiro?
Paul Blustein -
Talvez o da Rússia em 1996, mas também há elementos do caso sul-coreano. Como no caso russo, o programa brasileiro deverá ser concluído sem a concordância dos candidatos a presidente. Houve polêmica na época.
O FMI acabou sendo acusado de ajudar Ieltsin a derrotar os comunistas - o que, acredito, foi parte da motivação. Ieltsin pôde usar esse dinheiro para pagar salários e empréstimos atrasados e suavizar os problemas sociais. Ganhou as eleições.

Folha - É o que você prevê para o Brasil?
Blustein -
Sim, mas com uma pequena diferença. Se uma acordo for anunciado sem a consulta aos candidatos, Lula e Ciro Gomes terão motivos fortes para atacá-lo e denunciar as negociações como ilegítimas. O que está sendo feito é muito inteligente.
Está havendo uma concordância vaga dos candidatos e, com base nela, o Fundo está avançando nas negociações. Se, depois, os candidatos não quiserem aceitar o acordo, serão culpados pelo colapso dos mercados.

Folha - Isso se parece com uma chantagem...
Blustein -
E é uma espécie de chantagem, muito refinada. Minha sugestão é a de que o governo - Malan, Fraga e Cardoso- pensou nisso tudo. Você pode dizer que é uma maneira suja de prosseguir, mas, por outro lado, essa escolha dá ao povo brasileiro opções claras. E, também, aos candidatos. Eles aceitam as condições do acordo ou as consequências do colapso.

Folha - No caso russo, como é que os dirigentes do FMI justificaram concluir um programa sem a autorização dos candidatos?
Blustein -
Anos depois, entrevistei Stanley Fischer [antigo vice-diretor-gerente do FMI" para escrever meu livro. Ele justificou o empréstimo à Rússia usando o raciocínio de que, se os comunistas fossem eleitos, teriam a escolha de ficar com o programa ou não. Os mesmos termos funcionariam para quem fosse eleito - os comunistas ou Ieltsin. Foi engenhoso e imagino que é o que deva ser feito no Brasil.

Folha - Naquele caso, também tratava-se de um novo programa com implicações para a administração do presidente eleito?
Blustein -
Claro. Era um novo acordo, que teria um prazo de três anos. A Rússia tinha acabado de concluir seu programa anterior, de 1995 ("stand by"), e, apesar dos escândalos com relação ao uso do dinheiro do Fundo, conseguira cumprir todas as condições.

Folha - O FMI fixou metas e condições para um governo que nem conhecia ainda?
Blustein -
Incrível, mas conseguiu. Lembro-me de que havia a previsão de um déficit fiscal decrescente de 4% sobre o PIB [Produto Interno Bruto] em 1996, 3% em 1997 e 2% em 1998. Os três primeiros anos do futuro governo.
Ieltsin acabou ganhando e não cumpriu nenhuma das metas. A teoria era a de que, se os comunistas ganhassem e decidissem não cumprir as metas, o FMI suspenderia o programa. Não é o que aconteceu com Ieltsin.

Folha - Como foi a concordância no caso da Coréia do Sul?
Blustein -
Um primeiro acordo foi fechado no dia 3 de dezembro de 1997, quinze dias antes das eleições. Naquele momento, Michel Camdessus [então diretor-gerente do Fundo" obteve uma promessa muito vaga do candidato Kim Dae Jung e do outro candidato. Eram tão vagas que, no mesmo momento, Dae Jung dava entrevistas na imprensa criticando o acordo e dizendo que renegociaria seus termos.
Esse programa fracassou por outros motivos e, horas depois das eleições, quando já se sabia que Dae Jung venceria, o presidente eleito deu o sinal verde para outra negociação com o FMI.


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