São Paulo, quarta-feira, 04 de agosto de 2004

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ARTIGO

Moeda única mundial eliminaria instabilidades

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

O mês passado trouxe o 60º aniversário da conferência de Bretton Woods, New Hampshire, a qual inaugurou a nova ordem econômica internacional que se seguiria à Segunda Guerra Mundial. O dilúvio de artigos analíticos que essa ocasião ensejou se concentrava nas instituições criadas durante o encontro: o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Mas resta uma questão maior a ser debatida, que envolve determinar se as taxas de câmbio flutuantes provaram ser o substituto ideal para o regime insustentável de paridades cambiais ajustáveis instaurado pelo acordo monetário de Bretton Woods. A resposta é não.
Considerem as seguintes características da economia mundial, hoje: o país mais rico do mundo é seu maior importador de capital e devedor líquido; os dois períodos que viram empréstimos líquidos vultosos às economias de mercado emergente nas três últimas décadas terminaram em crises financeiras e abruptas inversões nas tendências de empréstimos; e, desde o mais recente conjunto de crises mundiais, as economias emergentes acumularam enormes reservas cambiais.
A participação em duas conferências me persuadiu de que um fator único explica esses fenômenos: a instabilidade cambial. A primeira das conferências discutia "como conviver com os desequilíbrios". A segunda tinha por objetivo estudar "planos para uma moeda mundial". Em conjunto, os dois encontros me encorajaram a questionar minha antiga crença nas vantagens das taxas flutuantes de câmbio.
Observe um período de globalização econômica precedente -a era que antecedeu a guerra de 1914. Sob o padrão-ouro de conversibilidade, todos os países empregavam, na prática, a mesma moeda. Os riscos cambiais, embora existissem, eram limitados. Hoje, o risco cambial é imenso. Desde o colapso do sistema de Bretton Woods, em 1971, as divisas vêm oscilando furiosamente.
O conceito introduzido principalmente por Ricardo Hausmann, hoje professor da Universidade Harvard, para explicar as conseqüências da instabilidade cambial para as economias de mercado emergente é o de "pecado original". A chamativa expressão se refere à "incapacidade de um país para tomar empréstimos denominados em sua moeda no exterior". Dos títulos de dívida colocados nos mercados internacionais entre 1999 e 2001, 97% eram denominados em cinco moedas apenas -o dólar, o euro, o iene, a libra esterlina e o franco suíço. Mesmo as economias emergentes mais bem administradas, como o Chile, se provaram incapazes de tomar empréstimos em suas moedas.
Qualquer que seja a explicação para essa dificuldade, a composição cambial limitada dos empréstimos mundiais tem conseqüências poderosas para os fluxos de capital. Por definição, qualquer situação de captação líquida pode criar um desequilíbrio cambial explosivo. Quando uma moeda cai, os países devedores experimentarão imensas perdas.
Tendo experimentado esse tipo de sofrimento ou assistido a outros países que passaram por situações como essa, as economias emergentes administradas com mais competência vêm tentando limitar seu passivo em moeda estrangeira. Isso é verdadeiro nas economias asiáticas de mercado emergente. Os países da região vêm tentando preservar posições robustas em conta corrente. Também reciclaram os fluxos de investimento estrangeiro direto e os converteram em reservas oficiais de ativos denominados em moeda estrangeira, especialmente títulos do Tesouro dos EUA.
Felizmente, para eles, é mais fácil manter uma moeda baixa do que impedi-la de despencar. De fato, dados os juros baixos que prevalecem nos países do leste asiático, onde há um superávit de poupança, a esterilização das conseqüências monetárias de intervenções cambiais cujo objetivo é manter um câmbio baixo termina custando muito pouco.
Mas isso não põe fim aos dilemas que as economias de mercado emergente precisam enfrentar. Como argumenta Ronald McKinnon, da Universidade Stanford, quanto mais sucesso os países conseguirem em seus esforços por manter um balanço de pagamentos limpo e limitar passivos líquidos em moeda estrangeira, mais eles sofrerão "conflitos de virtude". Em outras palavras, eles se verão sob pressão política cada vez mais intensa para permitir que suas moedas se valorizem.
Valorizações desse tipo acarretam o risco de arremessar países de inflação baixa a ciclos deflacionários e talvez a uma armadilha de liquidez do tipo que capturou o Japão nos anos 90. Isso é causa de preocupação na China.
Agora considere as conseqüências de um mundo no qual os emergentes desejem limitar sua captação líquida em moeda estrangeira, sustentar posições robustas em seu balanço implícito de pagamentos e resistir a pressões por valorização cambial. Presuma, além disso, que o mundo contêm, igualmente, sociedades ricas e em processo de envelhecimento nas quais existe um excesso estrutural de poupança com relação a investimentos e com isso superávits duradouros em conta corrente. O Japão é o exemplo mais importante.
Poderíamos esperar, assim, que o fluxo líquido de capitais privados para as economias emergentes assuma predominantemente a forma de investimento em ações. Também podemos presumir que o equilíbrio macroeconômico mundial exige que ao menos alguns dos países que podem captar recursos facilmente em suas modas mantenham grandes déficits em conta corrente. Os EUA são o exemplo fundamental.
Um mundo no qual tomar empréstimos no exterior é perigoso para a maioria dos países pobres é indesejável. Um mundo que compele o país cuja moeda serve de âncora mundial a manter grandes déficits em conta corrente parece instável. Deveríamos tentar eliminar essas restrições. A maneira mais simples seria acrescentar uma moeda mundial à economia mundial. Para os países de mercado emergente, pelo menos, isso seria uma imensa vantagem.
Estou ciente das objeções políticas e econômicas a essa idéia. Mas, se a economia de mercado mundial deseja prosperar nas décadas vindouras, uma moeda mundial parece ser uma necessidade lógica. Caso ela não surja, o mundo do livre fluxo de capital talvez jamais funcione tão bem quanto poderia. É pouco provável que eu venha a ver o mundo de que estou falando. Mas talvez meus filhos e netos vivam nele.


Tradução de Paulo Migliacci


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