São Paulo, quarta-feira, 04 de setembro de 2002

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ANÁLISE

Greenspan tira o corpo fora

PAUL KRUGMAN

Li alguma coisa em algum lugar a respeito de uma conferência sobre planejamento econômico, alguns anos antes da queda do comunismo. O delegado soviético disse que sua agência de planejamento sempre fazia o máximo que podia, dentro das circunstâncias dadas. Por isso, o planejamento soviético era sempre o melhor possível.
O homem da Gosplan teria se dado muito bem com Alan Greenspan. Este se diz isento de qualquer responsabilidade pela imensa bolha do mercado que surgiu durante seu turno de vigilância: diz que a política que escolheu foi a correta porque ele fez o melhor que podia.
No discurso que proferiu na semana passada na conferência de Jackson Hole, Greenspan apresentou duas desculpas. Em primeiro lugar, disse que, mesmo durante a explosão maluca do mercado em 1999, não ficou totalmente claro que alguma coisa estivesse errada: ""É muito difícil identificar claramente uma bolha até depois do fato -ou seja, depois que sua explosão tiver confirmado sua existência". Em segundo lugar, afirmou que o Federal Reserve (o banco central dos Estados Unidos) não teria podido fazer nada, de qualquer maneira: ""Existe alguma política que possa pelo menos limitar o tamanho de uma bolha e, portanto, suas consequências destrutivas? A resposta parece ser "não"".
Não fui o único a achar esse discurso evasivo a ponto de ser perturbador. Como observou o ""Financial Times", os autores de políticas sempre têm de agir com base em informações limitadas. ""O ônus da prova, para um banco central, não deve ser a certeza absoluta", disse o jornal.
O editorial também lembrou aos leitores que, embora Greenspan possa agora descrever-se como tendo estado cético, mas sem condições de fazer qualquer coisa durante os anos da bolha, na época muitos o viram como estando muito a favor dela. ""O presidente do Fed pode muito bem ter contribuído para a explosão de exuberância vista no final dos anos 90, com suas observações cada vez mais otimistas."
Ademais, há evidências que indicam que Greenspan realmente sabia mais do que deixou claro. Em setembro de 1996, numa reunião do Comitê Federal de Mercado Aberto (a quem compete definir a taxa de juros no mercado norte-americano), ele disse a seus colegas: ""Reconheço que, neste ponto, existe um problema de bolha no mercado de ações". E apresentou uma solução: ""Temos a possibilidade de aumentar as margens exigidas. Garanto que, se vocês quiserem livrar-se da bolha, seja lá o que ela for, isso será o suficiente".
No entanto ele nunca chegou a aumentar as margens exigidas, ou seja, nunca chegou a exigir que os investidores apresentassem mais dinheiro quando compravam ações. Na verdade, além de fazer um discurso sobre exuberância irracional, seguido por uma pequena alta na taxa dos fundos do Fed, Greenspan não fez absolutamente nada.
Hoje ele diz que não poderia ter feito mais, mas como sabe disso se em nenhum momento realmente tentou? O que realmente aconteceu, desconfia-se, é que, no início de 1997, Greenspan descobriu que suas tentativas hesitantes de deflacionar a bolha que começava a se formar enfureciam os investidores -e perdeu a coragem de agir.
Pior: ele então começou a fazer discursos cada vez mais eufóricos sobre as maravilhas da nova economia. Mas certamente deveria saber que aqueles discursos eram interpretados pelos investidores como retratação de seus avisos anteriores, como sinal de que os preços cada vez mais altos das ações eram justificados, sim, afinal de contas.
Mesmo assim, o mais importante da atitude defensiva adotada por Greenspan não é o que ela revela quanto ao passado, mas o que deixa entrever em relação ao futuro.
É que Greenspan é o único criador de políticas econômicas que temos. A política fiscal já está efetivamente afastada da pauta, em parte devido aos déficits de longo prazo que foram agravados pelos maus conselhos dados pelo próprio Greenspan. É estranho que ele não tivesse certeza de que o Nasdaq a 5.000 pontos (ontem fechou em 1.263,84 pontos) era uma bolha, mas acreditou que as projeções de superávit de dez anos eram confiáveis o suficiente para justificar um enorme corte nos impostos.
Seja como for, qualquer ação fiscal séria é excluída pelo oportunismo implacável da administração George W. Bush; cada proposta de estímulo econômico de curto prazo vira uma tentativa de implantar cortes permanentes nos impostos das grandes empresas e dos ricos. Assim, se a recuperação continuar a perder impulso, caberá ao Fed assumir as rédeas da situação.
No entanto as observações de Greenspan reforçam um receio que venho tendo nos últimos meses, o de que os executivos do Fed reajam à debilidade econômica contínua não com ações, mas com desculpas.
Já assistimos a esse processo no Japão, muito claramente. Em primeiro lugar, os representantes do Banco do Japão negaram que tivessem responsabilidade sobre o combate à estagnação econômica. A função deles, disseram, era unicamente garantir a estabilidade dos preços.
Depois, quando a inflação deu lugar à deflação, até mesmo a estabilidade dos preços deixou de ser responsabilidade deles. Em outras palavras, em lugar de arriscar-se a tentar resolver os problemas do Japão e não conseguir, o banco vem redefinindo sua missão uma vez após outra, para que não seja obrigado nem mesmo a tentar.
Nunca imaginei que o Fed pudesse empreender o mesmo caminho. Mas, depois de ouvir Greenspan explicar por que não poderia nem deveria ter feito nada, começo a ter dúvidas.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton e colunista do "The New York Times".

Tradução de Clara Allain


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