São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Transformação social como eixo do desenvolvimento

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A prioridade social tem de ser a essência do desenvolvimento econômico, e não um mero apêndice ou um suposto resultado natural do crescimento. Os macroobjetivos e prioridades sociais são basicamente três: 1) a inclusão de 56 milhões de brasileiros, subcidadãos que sobrevivem em condições de extrema precariedade, sem acesso aos bens e serviços essenciais a uma vida minimamente digna, com atenção preferencial para os setores mais vulneráveis como crianças e velhos; 2) a preservação do direito ao trabalho e da seguridade social de milhões de assalariados e de pequenos e médios produtores rurais e urbanos e a criação de novas fontes de empregos para jovens que buscam ingressar no mercado de trabalho e 3) a universalização dos serviços sociais básicos, com a elevação progressiva da qualidade dos serviços prestados e o crescente envolvimento da população na sua gestão, em coordenação com as várias esferas de governo.
O desenvolvimento com justiça social implica, portanto, uma ruptura com as tendências históricas do desenvolvimento brasileiro altamente concentrador da renda e da riqueza e gerador de exclusão social. Trata-se também de abandonar as políticas neoliberais da última década que se caracterizaram pela "irresponsabilidade cambial", mas também pela "irresponsabilidade fiscal" e tiveram como resultados mais visíveis uma explosão do déficit de transações correntes e da dívida pública interna. As consequências mais danosas dessas políticas foram as práticas predatórias de "desajuste fiscal permanente" com elevação constante das "contribuições sociais" e seu uso abusivo em pagamento de juros altos em vez de sua aplicação em gastos na seguridade social, como está previsto na Constituição de 1988.
O núcleo da retomada do crescimento sem restrição externa teria de deslocar-se para a ampliação do mercado interno de massas, envolvendo a solução de pontos de estrangulamento da infra-estrutura e correção de rumo da expansão de serviços públicos de uso universal e dos bens básicos da cesta de consumo popular. Uma mudança radical do modelo de financiamento da economia é fundamental, com a reorientação e aumento da capilaridade das instituições públicas de crédito. A redefinição do papel e da importância do investimento estrangeiro em certos setores industriais e de infra-estrutura, em que se tornaram os maiores geradores de déficits nas contas externas, é também necessária. Finalmente, a modificação das formas de intervenção do Estado na economia exige uma coordenação com o setor privado dentro de uma visão inovadora que permita construir uma ética pública de regulação e apoio às políticas prioritárias.
A transformação do social no eixo do desenvolvimento não significa, portanto, somente revalorizar, nos planos de governo, os chamados aspectos sociais -a fome, a educação, a saúde, o saneamento básico, a habitação e a cultura-, que são programas em si mesmos meritórios para ampliar o emprego e a cidadania. Significa ir além disso e conceber programas coordenados de investimento nesses setores, na infra-estrutura e nos sistemas logísticos e de crédito interno, transformando-os em vetores do crescimento, da distribuição de renda e do emprego. Deve significar também uma ocupação mais racional do espaço, sobretudo dos recursos naturais e das fontes de água e energia, e conceber e levar à prática uma geopolítica interna soberana, auto-sustentável e pactuada em todos os âmbitos da Federação.
Vejamos a "dinâmica econômica" de alguns casos em que o pensamento conservador mais exercita a capacidade de sofismar com as propostas da oposição. A ampliação da produção de alimentos é essencial já que a elasticidade da demanda diante das políticas redistributivas, em níveis baixos de renda, costuma ser extremamente elevada. A organização do abastecimento desses bens (que não passam pelas redes de exportação das grandes commodities agrícolas) é essencial sobretudo no caso dos alimentos produzidos pelos assentamentos de uma reforma agrária ampliada, que é indispensável para assegurar a eficácia do esforço de aumento da produção e da distribuição da renda e da propriedade.
As políticas redistributivas e de emprego levarão também a um aumento de escala dos setores de bens tradicionais que, além de atender ao aumento do consumo popular, permitirão uma especialização e uma diferenciação de produtos favoráveis ao aumento da eficiência de certos complexos agroindustriais, que vão dos recursos naturais ao produto final. Assim, um aumento da escala de produção de bens de uso generalizado cria também condições de aumento simultâneo do consumo interno e das exportações.
Finalmente, a expansão da renda e do emprego permite um aproveitamento seletivo da capacidade ociosa existente nos setores mais modernos da economia, que deixaram de ser dinâmicos. Estes voltarão a crescer por força da demanda induzida sobre bens finais manufaturados mais complexos e componentes de suas cadeias produtivas. Aqui o problema central é o da restrição externa, em que é necessário aumentar simultaneamente a produção, as exportações e a ressubstituição de importações.
Não se trata, portanto, de voltar ao passado, mas, pelo contrário, de avançar com um rumo diferente e estruturalmente mais equilibrado. Essa nova transição democrática requer a ruptura com o padrão patrimonialista de gestão estatal e com a submissão da acumulação interna à lógica do capital financeiro internacional. Não bastam apenas declarações de inversão de prioridades e "falsos consensos" sobre a necessidade de retomada do crescimento. Exige sobretudo a ruptura do pacto das forças conservadoras que vêm governando este país e deturpando sistematicamente a orientação social e o interesse nacional de nossa transição democrática inicial.


Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@cdsid.com.br



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