São Paulo, quarta, 4 de novembro de 1998

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LUÍS NASSIF

As premissas do pacote

Sabe a diferença entre um executivo e um intelectual? O rei chama os dois e expõe o problema: "O país não pode mais contar com financiamentos externos e precisa reduzir suas necessidades de tomar dólares. O que me sugerem?".
Sem muita firula, o executivo vai ao ponto: "O senhor pode parar de pagar juros e amortizações de empréstimos, proibir a saída de dólares e contar com a volta dos financiamentos internacionais?". O rei: "Não". "Então a única saída é estimular as exportações e desestimular as importações", conclui o executivo. E trata de preparar um plano para atingir o objetivo.
Aí entra em ação o intelectual: "Se todos os países quiserem reduzir as importações e aumentar as exportações, no agregado você vai contrair o comércio internacional. Portanto esse raciocínio é macroeconomicamente um equívoco". O rei, também intelectual, entusiasma-se: "Uma análise brilhante. Mas o que eu faço com isso?".
A entrevista dada por André Lara Resende a Celso Pinto, no último domingo, é uma boa oportunidade de avaliar as premissas nas quais se baseia a equipe econômica para fundamentar o pacote fiscal e se perguntar: o que o país faz com isso?
Há um objetivo a ser alcançado e dois problemas a ser enfrentados pela política econômica. O objetivo é o desenvolvimento auto-sustentado. Os problemas, o déficit interno e o déficit das contas correntes. A solução dos déficits deve ser um dos meios para se atingir o objetivo. Portanto sua solução não pode comprometer o objetivo.
O ponto que deflagrou a crise, segundo Lara Resende, foi "a brutal restrição do financiamento externo (...) por razões que nada têm a ver com o Brasil".
Se a crise de financiamento é sistêmica, o desafio consiste em depender menos de dólares. Dentro do quadro atual, como se reduz a dependência externa? Aumento de exportações não resolve porque é uma tese "macroeconomicamente equivocada" -como se o Brasil pudesse desequilibrar o comércio internacional, com sua participação de 1%. E, se é macroeconomicamente equivocada, como justificar que o mesmo governo tenha fixado a meta de dobrar as exportações em quatro anos?
Financiamento externo, nem pensar, porque a crise é sistêmica. Pior: confrontado com as afirmações de Paul Krugman, de que a comunidade financeira internacional parte de análises erradas da crise (como promover ajuste fiscal em economias em recessão), apenas para atender às expectativas de mercado, Lara Resende sustenta que as expectativas são importantes e têm que ser atendidas -ainda que se baseiem em premissas falsas- porque, estando certas ou erradas, podem afugentar os investidores. Como se ainda houvesse investidores.
Além disso, expectativa por expectativa, o último fim-de-semana foi pródigo em análises dos principais porta-vozes da comunidade financeira internacional, sustentando que o pacote fiscal brasileiro é inconsistente porque não resolve as fragilidades nas contas externas.

Possibilidades
A rigor, Lara Resende acena com duas possibilidades de redução das fragilidades externas. A primeira, a idealização do futuro, contando com insumos que, a rigor, se mostram insuficientes, no tempo, para vencer a crise externa. "Se" investirmos mais em educação, "se" as importações passarem a ter conteúdo tecnológico, "se" os países da Ásia perceberam o Brasil como uma boa oportunidade de investimentos para seu excedente de capital... Ou seja, um avião amarrado com barbantes, que cairá mesmo estando em perfeito estado de funcionamento.
A segunda possibilidade é a relação automática que estabelece entre equilíbrio das contas internas e das contas externas. Lara Resende toma por verdade consagrada esse automatismo entre os dois déficits. Um país pode substituir a poupança externa por poupança interna. Resolvido o problema do déficit interno, automaticamente estará resolvido o problema do déficit externo.
Uma teoria, para ser universal, precisa se aplicar a todos os países e a todas as situações.
* O Chile obteve equilíbrio nas contas internas e levou anos até equilibrar as contas externas, o que só aconteceu devido ao aumento do preço do cobre.
* O Japão é superavitário, a Rússia, deficitária, e ambos são alvos de corridas especulativas. A teoria em questão explica o caso russo, mas não se aplica ao japonês.
* O maior componente do déficit público brasileiro, nos últimos anos, foram as taxas de juros, mantidas elevadas para atrair dólares para o país -não para financiar a dívida pública, que, em meados de 1994, era irrisória.
É medida de prudência amarrar o destino do país cegamente a uma teoria que se comprovou não ser de aplicação universal? E se não equilibrar as contas externas? E qual o prazo de tempo para que isso ocorra? E se o Chile tivesse embarcado nisso na época?

Descanso eterno
Recebo do leitor Richard Calson o seguinte e-mail: "Luís, seu artigo (sobre planos de saúde) me deixou uma dúvida. Sou candidato a doador, uma vez que acho que meus órgãos podem servir para que uma pessoa viva melhor do que eu, depois de morrer. No seu artigo, você disse: "Todo candidato a doador, depois de morto, deverá se inscrever...'. Será que vou ter que enfrentar uma fila daquelas?".
Preparei um copião da coluna, burilei e mandei a coluna burilada. Não entrou no sistema. Remandei por engano o copião. Fiz por merecer a gozação. Diferentemente do que escrevi, os mortos podem descansar em paz. A eles, peço perdão.

E-mail: lnassif@uol.com.br



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