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São Paulo, segunda-feira, 05 de maio de 2003

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DESVIO DE FUNÇÃO

Para TST, "quem está empregado não procura seus direitos, pois as relações de emprego são precárias"

Justiça do Trabalho só atende desempregado

FÁTIMA FERNANDES
CLAUDIA ROLLI

DA REPORTAGEM LOCAL

A Justiça do Trabalho, criada no Brasil na década de 40 para resolver conflitos entre patrões e empregados, se transformou na Justiça dos desempregados.
Pelo menos 80% dos processos que chegam às mãos dos juízes trabalhistas -quase 2 milhões por ano- são movidos por quem está sem emprego, informa levantamento recente do TST (Tribunal Superior do Trabalho). No caso dos outros 20%, boa parte das ações é contra ex-patrões.
Em vez de intermediar impasses entre empregado e empregador enquanto o contrato de trabalho está em vigor, o trabalhador recorre à Justiça só após romper o vínculo de emprego. Até porque, se correr atrás dos seus direitos antes, ele é demitido.
O fato de a Justiça ser acionada quase que exclusivamente por desempregados será tema de debate na reforma trabalhista que o governo Lula quer realizar. Existe uma polêmica entre os especialistas sobre o papel da Justiça.
Desemprego recorde, falta de fiscalização para o cumprimento de leis trabalhistas, boicote das empresas para contratar quem recorre à Justiça e o fim da estabilidade no emprego, com a criação do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), explicam, na opinião de especialistas, a procura da Justiça por desempregados.

Precarização do emprego
"Quem está empregado não procura os seus direitos na Justiça porque as relações de emprego estão cada vez mais precárias", afirma o ministro Francisco Fausto, presidente do TST. A precarização no emprego, diz, é resultado da globalização da economia e da reestruturação das empresas, que enxugaram custos, automatizaram a produção e cortaram vagas.
O trabalhador também teme ir à Justiça porque existe no país uma cultura de represália aos que buscam seus direitos, afirma Hugo Melo Filho, presidente Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho). A lista negra -documento que circula entre as empresas para identificar se o trabalhador recorreu à Justiça-, diz, é prova disso.
"Quando a empresa não participa do esquema de lista negra, exige, na hora de contratar, certidão negativa para que o trabalhador prove que não está movendo ação contra outro empregador. Essa é a realidade no país hoje", afirma.
O Brasil é recordista mundial em processos trabalhistas, segundo levantamento recente do Banco Mundial. Enquanto no Brasil são movidos cerca de 2 milhões de processos trabalhistas por ano, nos Estados Unidos esse número não passa de 75 mil. No Japão, a média é de 2.500 ações por ano.

Legislação complexa
"Isso acontece também porque a legislação trabalhista é muito complexa. Às vezes, por mais organizado que seja um departamento pessoal de uma empresa, ele comete erros devido à minuciosidade da lei", diz Valério Augusto do Carmo, diretor-geral de coordenação judiciária do TST.
Na sua análise, o volume de processos trabalhistas também varia de acordo com o desempenho da economia brasileira. Quando o país vai bem, o trabalhador reclama menos, até porque ele tem mais chance de estar empregado. Quando vai mal, a procura pela Justiça do Trabalho aumenta.
Para o professor da USP José Pastore, a lei trabalhista, além de "velha e detalhista", limita o espaço de negociação entre patrões e empregados. Na sua avaliação, o que é acertado entre as partes não dá "encrenca".
"As comissões de conciliação são um instrumento valioso para resolver pendências trabalhistas e desafogar a Justiça do Trabalho. O problema é que o modelo criado no Brasil abre brechas para os que querem agir de má-fé", diz Hugo Melo, da Anamatra. A associação apresentou projeto na Câmara para modificar essas comissões e evitar que o trabalhador seja lesado nas negociações.
Juízes e advogados consultados pela Folha entendem que a Justiça do Trabalho chega a ser um bom negócio para as empresas. "Isso porque, quando elas deixam de pagar o direito de um trabalhador e ele recorre à Justiça, a taxa de juros que incide sobre o débito trabalhista é de apenas 1% ao mês. É melhor para a empresa, portanto, aplicar o dinheiro que tem a pagar para o empregado no mercado financeiro e aguardar decisão da Justiça", diz Vantuil Abdala, vice-presidente do TST.
Como os processos são demorados -se arrastam por anos-, as empresas acabam quitando o débito trabalhista após ter ganho no mercado financeiro com o dinheiro do trabalhador. Tanto que o TST já tem quase pronto um anteprojeto de lei que estabelece juros mais altos sobre os débitos trabalhistas. A proposta é que essa taxa seja equiparada à da Justiça comum (taxa Selic).
Para os mesmos especialistas, a Justiça do Trabalho é ao mesmo tempo fundamental para garantir os direitos dos trabalhadores. "Essa Justiça é gratuita e o empregado pode recorrer a ela independentemente de advogado. Cerca de 60% dos processos ajuizados são resolvidos em até 30 dias após a abertura do processo pelo trabalhador", diz Abdala.
Para consertar as distorções do sistema da Justiça trabalhista, segundo ele, o país precisa de uma lei que estabeleça a garantia de emprego, que autorize o sindicato de categorias a reclamar na Justiça em nome dos trabalhadores, que estipule juros maiores sobre os débitos dos trabalhadores e que puna o empregador que descumprir suas obrigações trabalhistas. "Isso reduziria significativamente o volume de processos."
Outra medida que pode diminuir o número de reclamações trabalhistas, diz, é o aumento de 40 para 200 salários mínimos para que uma ação seja resolvida apenas na primeira instância. "Não faz sentido uma ação que trate de débitos inferiores a 200 salários mínimos ir para o TST", afirma.
Em estudo recente, Pastore afirma que, quando a Justiça do Trabalho julga um processo, acaba gastando mais do que devolve ao trabalhador. Segundo ele, no Fórum Nacional do Trabalho, que vai discutir a reforma trabalhista, a sociedade terá de decidir se quer acabar ou não com a legislação trabalhista que "fabrica" conflitos e é cara para o país.


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