São Paulo, sexta-feira, 05 de maio de 2006

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ANÁLISE

Em jogo de cena, solução de crise passa longe

IGOR GIELOW
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A reunião em Puerto Iguazú serviu para quase nada, exceto talvez demarcar as diferenças de interesses na mesa. Sobressaiu-se, como sempre, a colorida e cada vez menos folclórica retórica do venezuelano Hugo Chávez.
A nota do encontro é uma coleção de obviedades. Um blablablá sobre a soberania boliviana e o direito de La Paz de ser dona de seus hidrocarbonetos, como se alguém houvesse colocado isso em dúvida. Sobre o que interessa, nenhuma palavra sobre a expropriação dos bens e uma evasiva sobre a questão dos preços.
Coube a Néstor Kirchner o papel do pragmático, ao citar garantia do suprimento de gás, outra obviedade pelo menos até o cumprimento do prazo para o acerto entre as partes.
De resto, um jogo de cena sobre a necessidade da integração latino-americana, quando na verdade Chávez quer a "sua" integração, "bolivariana", a Argentina busca cuidar dos seus problemas e o Brasil não concilia retórica com prática de governo.
É citada também a aceleração do projeto do tal gasoduto regional, obra carregada de tintas surreais. Quem precisa mesmo do gás da Venezuela abaixo do Pará?
Lula, por sua vez, foi tênue ao comentar a categórica afirmação do presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, de que não faria novos investimentos na Bolívia. A impressão é de que ou um, ou outro, estão enrolando a platéia.
O "deixa-disso" tem sido a tônica do comportamento brasileiro, por uma simpatia ideológica anacrônica que confunde defesa de direitos do contribuinte brasileiro com imperialismo caboclo.
Antes, o chanceler Celso Amorim repetira sua tradicional resposta aos críticos: são todos oportunistas. Há muita estridência e incorreções nas críticas, é fato, mas é igualmente oportunista a posição oficial de que é tudo herança maldita do governo FHC.
O governo teve mais de três anos para eventualmente rever a dependência do gás boliviano. Não o fez porque o acordo lhe favorecia. Se não sabia que Morales ia cumprir o prometido, com a mão de Chávez o amparando, foi ingênuo. Agora Amorim diz que sua política externa é que garantirá uma boa solução para a crise, numa inversão de sinais quase constrangedora.
Já Evo Morales mostrou uma reticência que não havia transparecido alguns dias atrás, quando apareceu amparado por tropas para mostrar o que era "propriedad de los bolivianos". A palavra "chantagem da Petrobras" sumiu de sua boca.
Mas foi Chávez quem saiu no lucro da crise alheia. Fez um discurso de tutor, como se Morales fosse um bom aluno. Deu pitacos sobre o receituário "bolivariano" para "refundar" a Bolívia: eleição de uma Constituinte, nacionalizações. Antes, ainda, havia defendido a "integração bolivariana" no eixo Caracas-La Paz.
Com tudo isso, fica difícil dizer que é apenas preconceito achar que Morales talvez seja despreparado para a função -artifício que a correção política vigente entre os "progressistas" da América Latina lança mão quando algum dos seus pisa na bola.
O que não implica defender outro fetiche regional, à esquerda e à direita, o golpismo. Morales foi eleito e defende uma causa justa. Se saberá o que fazer, é outra história, e os sinais da semana não foram dos mais animadores.
Enquanto isso, segue a inexistente crise, segundo a definição peculiar de Lula à sucessão de eventos que o levou a convocar outros três chefes de Estado a se reunir emergencialmente.


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