São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Um novo paradigma em economia monetária?

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A tese central do novo livro de Joseph Stiglitz, "Rumo a um Novo Paradigma em Economia Monetária" (a ser publicado em português pela editora W11, selo Francis), defende o ponto de vista de que a abordagem tradicional da teoria monetária, baseada na demanda de moeda por transações, é incorreta: "Ela não oferece uma explicação convincente do como e por que o dinheiro é importante". Para Stiglitz, a compreensão do funcionamento de uma economia monetária exige a análise das forças que determinam a demanda e a oferta de crédito e envolve, portanto, o entendimento do papel dos bancos.
A economia monetária competitiva tal como a concebe Stiglitz supõe a existência de agentes especializados na avaliação da qualidade dos títulos de dívida e, portanto, na investigação a respeito dos riscos de não-pagamento por parte dos que se candidatam ao crédito. Os bancos são instituições especializadas na produção de informações sobre os devedores e no monitoramento de suas intenções de cumprir ou envidar esforços para cumprir a promessa de pagamento. Nesse sentido, a existência dos bancos e do crédito pressupõe imediatamente a possibilidade do "default" e da falência do devedor, elementos que devem ser incorporados à avaliação dos riscos enfrentados pelos provedores de empréstimos.
Os neo-keynesianos, como Stiglitz, privilegiam a informação assimétrica em mercados de crédito. Para tais autores, os mercados financeiros têm características distintas dos mercados onde são transacionadas as mercadorias profanas. A assimetria de informação é inerente à relação credor-devedor: o bem transacionado não é um valor real disponível, mas uma promessa, o que dificulta aos contratantes avaliar adequadamente as condições e as intenções do outro protagonista. Haverá seleção adversa quando o credor -incapaz de avaliar corretamente o risco de concessão dos empréstimos- discriminar os bons devedores potenciais, elevando o custo do crédito. O risco moral é fruto da incapacidade do prestamista de supervisionar corretamente o uso do crédito por parte do devedor, que pode estar empenhado em aplicar o dinheiro em operações de maior risco.
Tais problemas "informacionais" determinam um funcionamento peculiar dos mercados de crédito. A teoria convencional ensina que um aumento excessivo na demanda de crédito deve provocar uma elevação da taxa de juros dos empréstimos de modo a "reequilibrar" oferta e demanda. No entanto os bancos podem considerar a nova taxa de juros incompatível com a maximização do retorno esperado sobre os empréstimos totais. Isso porque, a partir de um certo nível, a subida dos juros aumenta o risco de inadimplência dos tomadores. "O banco", afirma Stiglitz, "recusaria um cliente que oferece uma taxa de juros mais elevada imaginando que o risco de não-pagamento seja maior. O retorno esperado sobre esse empréstimo seria mais baixo do que aquele observado nos empréstimos em vigor" (com taxas de juros menores).
Esses fenômenos, constitutivos dos mercados de crédito, decorrem de falhas de coordenação dos mercados. Falhas de mercado, na linguagem técnica, dizem respeito a déficits no abastecimento de informações aos agentes envolvidos numa transação. No exemplo acima, o déficit informacional impede que os juros equilibrem a demanda e a oferta de fundos e dá origem ao racionamento de crédito por parte dos bancos, como forma de maximizar o retorno esperado sobre a carteira de empréstimos.
Os bancos comerciais são, ademais, instituições singulares: responsáveis pela criação de moeda, dispõem da faculdade de aumentar o poder de compra, até então inexistente, aos proprietários de riqueza, a partir da avaliação dos riscos de crédito. Os bancos não são simples intermediários financeiros, mas detêm a prerrogativa de conceder empréstimos que excedem o valor de seus depósitos. A capacidade dos bancos, em conjunto, de expandir o crédito e, portanto, de criar depósitos que servem de meios de pagamento, vai depender, numa economia fechada, da demanda do público e das condições impostas pelo Banco Central para o abastecimento de liquidez aos membros do sistema bancário. A taxa de juros de curto prazo e as operações de mercado aberto, manejadas pelo Banco Central, são a cúspide desse sistema de pagamentos e de provimento de liquidez, pois permitem às autoridades monetárias tornar mais estritas ou relaxadas as condições em que são demandados os novos fluxos de crédito ou negociados os títulos da dívida pública já existentes no mercado.
De uma perspectiva macroeconômica, o crédito é uma aposta, sujeita a perdas, no acréscimo de valor a ser criado no processo de produção -cuja operação depende da contratação de força de trabalho e da compra e utilização dos elementos do capital fixo e circulante-, bem como da realização desse valor mediante a venda dos bens produzidos. As decisões de gasto apoiadas no crédito devem, portanto, ser avaliadas pelo sistema de instituições que administra a moeda e os fundos financeiros da sociedade.
Os empresários gastam na expectativa de capturar lucros, enquanto geram a renda da comunidade. No processo de "fechamento" do circuito gasto-utilização da renda, os lucros capturados pelas empresas e a fração da renda não gasta, apropriada pelas famílias, definem o montante da poupança agregada, ou seja, o "funding" adicional necessário para o pagamento do serviço das dívidas e para a acumulação de riqueza.
Podemos, dessa forma, imaginar a economia como uma estrutura de balanços inter-relacionados e em transformação: aos ativos correspondem passivos que resultaram de decisões passadas. A essa configuração patrimonial estão se agregando os resultados das decisões em curso relativas à posse de ativos e à forma de financiá-los. Além de adiantar recursos líquidos e de criar liquidez para a efetivação do gasto, o sistema bancário é encarregado de intermediar as mudanças patrimoniais ao longo dos sucessivos "momentos" de geração e utilização da renda.
Stiglitz faz questão de sublinhar que o "novo paradigma monetário" não trata da oferta de poupança, ou seja, da parcela da renda que não é gasta em consumo, mas, sim, da oferta de crédito que depende não só da demanda por fundos mas, sobretudo, das condições em que os bancos estão dispostos a ofertar empréstimos.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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