São Paulo, sexta, 6 de novembro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA

Câmbio, autoritarismo e simplismo

MAILSON DA NÓBREGA

O Programa de Estabilidade Fiscal, anunciado na semana passada, reacendeu o bom debate sobre o câmbio, mas também promoveu o reaparecimento de visões autoritárias e simplistas do processo decisório em uma sociedade democrática.
O bom debate esteve a cargo da corrente que defende a desvalorização cambial. Coerentes, seus integrantes condenaram o programa. Com argumentos extraídos de sua própria tese, procuraram mostrar que a desvalorização evitaria grande parte das medidas.
Se desvalorizasse, diz-se, os juros, a grande fonte do déficit público, poderiam cair imediatamente. Juros baixos impulsionariam a economia. Haveria aumento da atividade econômica, do emprego e da arrecadação. O déficit despencaria sem sacrifícios.
O raciocínio quanto ao efeito da desvalorização no aumento da receita contém defeitos que procurei mostrar em meu artigo de 28/8/98, neste espaço.
Quanto à desvalorização, um argumento muito usado é que podemos fazê-la sem riscos, pois dispomos de mais de US$ 40 bilhões de reservas, que serão reforçadas pelo acordo com o FMI. Ruim seria desvalorizar quando as reservas se exaurissem.
Não há, todavia, experiência recente desse tipo de desvalorização. Os casos mais conhecidos são os de países como México e Tailândia, do lado dos emergentes (que desvalorizaram quase sem reservas), e Inglaterra, Suécia, Canadá, Austrália e outros, do lado dos desenvolvidos (ou "brancos", como diz Paul Krugman).
No primeiro grupo, a desvalorização produziu resultados negativos do lado da inflação e do PIB. No segundo, restaurou as condições para o crescimento sem inflação. No Brasil, pode ser uma coisa ou outra.
Na dúvida, nenhum governo sério desvalorizaria, muito menos neste grave momento de crise. Melhor é buscar o ajuste fiscal e obter apoio internacional para atravessar a turbulência sem uma crise cambial desestabilizadora.
Se o Congresso aprovar as medidas, como se espera, a mudança no regime fiscal começará a acontecer juntamente com a provável ressurreição do apetite dos investidores pelo risco em países como o Brasil, agora mais fortalecido em seus fundamentos.
Aí, sim, haveria condições para mudar o regime cambial, provavelmente partindo-se para a flutuação dentro de uma banda mais larga. Dificilmente, pois, o governo cederá às propostas em favor da desvalorização, apesar da qualidade dos nomes que a defendem.
Em meio a esse debate, os autoritários -a versão brasileira do cesarismo e do gaulismo- lamentaram que o presidente tenha proposto o aumento de impostos. Isso teria acontecido porque as reformas não foram feitas há mais tempo.
Diz-se que FHC errou ao não ter feito todas as reformas no primeiro ano de governo. Pior, abandonou as reformas para cuidar apenas da reeleição. Mais: não fez as reformas porque não quis, pois, "sempre que quer, consegue apoio do Congresso", como na reeleição. Bastaria, pois, "vontade política".
Nenhuma estratégia de reforma sob regime democrático pode deixar de considerar a extensão das decisões a tomar, a eficiência decisória do sistema político e os riscos de sobrecarga e paralisia.
O Brasil é um país complexo, com agenda ciclópica de reformas e partidos excessivamente fragmentados. Se entupisse o Congresso de projetos, fiando-se essencialmente no seu prestígio político, FHC colheria paralisia em lugar de reformas.
Deve-se lembrar, ademais, que o presidente toma posse com o Congresso antigo, pois o novo inicia seus trabalhos no mês de março seguinte.
Sobre a reeleição, sua rápida aprovação não se deveu a um suposto abandono das reformas, mas à natureza plebiscitária da proposta.
Tratava-se de permitir a recandidatura do líder de um projeto vencedor. Praticamente não havia interesses eleitorais a contrariar. Já as reformas são empreendimento complexo, que contraria poderosos grupos de interesse.
A idéia de que basta "vontade política" traduz a rigor uma demanda de um estilo voluntarista que costuma não dar certo ou descambar em ditadura.
A crítica mais simplista é a que atribui ao atual governo o erro de não ter feito antes a reforma fiscal.
A facilidade com que se usa a expressão "reforma fiscal" entre nós desconhece a enorme complexidade do tema. É como se fosse algo simples, que se pode obter em um fechar e abrir de olhos, ao toque de um botão em um painel eletrônico.
O presidente venceu, errou muitas vezes e foi derrotado outras tantas na condução das reformas. As razões estão bem longe dessas simplificações da realidade.


Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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