São Paulo, quinta-feira, 07 de fevereiro de 2008

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ARTIGO

Enquadrando o setor financeiro

Um setor financeiro que gera imensas recompensas aos privilegiados e crises repetidas para centenas de milhões de inocentes é inaceitável politicamente

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Quando surgirá a próxima crise financeira? Não sabemos. Mas podemos estar certos de uma coisa: a menos que aprendamos com a crise atual, outra delas causará perigo de naufrágio para a economia mundial em futuro não muito distante.
A grandes questão, de fato, é determinar se as lições aprendidas devem ser incorporadas à regulamentação. Os oponentes otimistas da regulamentação argumentam que os bancos aprenderam a lição e se comportarão de maneira mais responsável no futuro. Os oponentes pessimistas temem que os legisladores possam criar uma versão elevada ao quadrado da Lei Sarbanes-Oxley. A legislação aprovada em 2002 pelo Congresso dos EUA, depois do escândalo da Enron e outros, era ruim o bastante, afirmam. Os bancos poderiam agora ficar sujeitos a algo de ainda pior.
"Podem continuar sonhando", respondo aos otimistas. Aos pessimistas, respondo que sim, existe risco real de regulamentação excessiva, mas a inação também representa perigo.
Dois pontos se destacam quanto ao sistema financeiro nas últimas três décadas: sua capacidade de gerar crises, e o desequilíbrio entre riscos públicos e recompensas privadas.
Quanto ao primeiro ponto, é verdade que nenhuma das crises financeiras do período prejudicou gravemente a economia mundial, ainda que algumas tenham devastado economias nacionais. Mas isso é provavelmente só questão de tempo. O que poderia estar acontecendo agora caso a inflação nos EUA estivesse fora de controle ou o apoio de governos estrangeiros ao dólar fosse retirado? Uma profunda e prolongada recessão nos EUA seria provável, com conseqüências políticas e econômicas devastadoras.
É igualmente verdade, quanto ao segundo ponto, que o setor bancário é recipiente de maciços subsídios públicos, implícitos e explícitos: conta com garantia contra quase todas as formas de risco de liquidez; muitos de seus passivos parecem transferíveis em última análise ao Estado; e os bancos centrais criam uma curva de rendimentos favorável sempre que os bancos estão descapitalizados, o que representa uma transferência direta para qualquer instituição capaz de tomar empréstimos a taxas baixas e emprestar a juros mais altos.
Além disso, os bancos enfrentam com clientes, entre acionistas e executivos, e executivos e outros funcionários. Tudo isso é exacerbado pela dificuldade de monitorar a qualidade das transações até que um prazo consideravelmente longo tenha transcorrido.
Considerem, por exemplo, o processo que levou o crédito imobiliário de risco ("subprime") aos investidores na forma de veículos especiais de investimento (SIV). Entre as partes que efetivamente recebiam o empréstimo e as partes que efetivamente assumiam os riscos, existiam originadores de empréstimos, criadores e operadores de ativos securitizados, agências de classificação de crédito, equipes de venda, dirigentes de bancos e instituições de SIV, bem como administradores de fundos de pensão e outros. Dado o número de agentes e a dimensão da assimetria na informação, é espantoso que tão pouco tenha corrido mal.
No entanto, grandes riscos decerto foram assumidos. Os EUA inteiros parecem um gigantesco fundo de hedge. Os lucros do setor financeiro saltaram de 5% do total de lucros pós-impostos das empresas nacionais, em 1982, para 41% em 2007, ainda que a fatia do setor na economia tenha crescido só de 8% para 16%. Suas margens de lucros vinham fortes, até recentemente. Agora, enfim, os lucros por ação e as avaliações das ações despencaram.
Mas será que se pode fazer algo de efetivo para conter a opção pelo risco que essa tendência implica? Para responder, precisamos distinguir entre controles "microprudenciais", sobre instituições, e controles "macroprudenciais", que se aplicam a todo o sistema.
Com relação à primeira área, o consenso entre as autoridades regulatórias parece ser o de que o sistema precisa de alterações modestas. Elas poderiam incluir maior atenção à administração da liquidez; mais testes de desgaste para os modelos de "valor em risco"; maior transparência, em todos os segmentos; e maior independência das agências de classificação de crédito com relação às instituições que emitem títulos.
Eu argumentaria, porém, que nenhuma dessas medidas fará diferença suficiente. As autoridades precisam prestar atenção aos incentivos -especialmente a estrutura de salário- nas empresas. E teriam de adotar uma abordagem mais severa do que a empregada no mais recente ciclo.
O ponto mais importante, porém, continua a ser a regulamentação macroprudencial. Como apontou William White, do Banco de Compensações Internacionais, bancos quase sempre entram em dificuldades juntos. O mais recente ciclo de empréstimos malucos, seguido por pânico e repulsa, é um exemplo paradigmático.
Uma resposta poderia ser elevar os requerimentos de capital de maneira contrária ao ciclo econômico, em resposta ao crescimento do crédito, como sugeriram os professores Charles Goodhart e Avinash Persaud. Eles também sugeriram um limite para a relação máxima entre empréstimo e valor, em caso de hipotecas. White acrescenta a isso a necessidade de uma política monetária mais firme.
Essas idéias são razoáveis. No entanto, como aponta White, a força da pressão contra a idéia de "levar a bebida embora no começo da festa", na famosa definição de William McChesney Martin, ex-presidente do Federal Reserve, é formidável. Além da inércia burocrática, ações como essa estão sujeitas tanto a incertezas inevitáveis sobre os perigos das atuais tendências quanto à resistência de interesses privados.
Além disso, as autoridades correm o constante perigo de perder de vista o bosque sistêmico por conta das árvores institucionais. Eu acrescentaria ainda o simples fato de que a política monetária dos EUA sofre restrições criadas pela política monetária e cambial de terceiros, especialmente a China.
Ao final, nos resta um dilema. Por um lado, temos um setor bancário que demonstrou a capacidade de gerar crises imensas devido a incentivos para que assuma riscos subestimados. Por outro lado, nos falta vontade e até capacidade para regulamentá-lo.
Mas não resta outra alternativa óbvia a não ser tentar fazê-lo. Um setor financeiro que gera imensas recompensas para os privilegiados e crises repetidas para centenas de milhões de espectadores inocentes é inaceitável politicamente no longo prazo. Aqueles que desejam que a globalização conduzida pela economia de mercado prospere reconhecerão que este é seu calcanhar de Aquiles. Ação efetiva precisa ser tomada já, antes que chegue uma crise mundial ainda maior.

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