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OPINIÃO ECONÔMICA
Especialistas em desespero
RUBENS RICUPERO
O instituto Fernand Braudel, que inaugura amanhã a
conferência "O futuro da democracia na América Latina", não
poderia planejar semana mais
adequada a fim de chamar a
atenção para o tema.
No mesmo ano em que comemora 200 anos de Independência,
o Haiti obriga a fugir do país um
presidente saudado, há alguns
anos apenas, como a aurora que
sucedia à longa noite de Duvalier
e sequazes.
Pouco ao sul, na Venezuela, até
meados dos 1970, um dos ex-modelos de sistema partidário forte
no continente, a dissolução desse
sistema, após 1989, e a radical polarização que se seguiu cobravam
novos mortos em violentos protestos de rua.
Não custaria esforço recordar
que a Bolívia, também nação em
aparência estabilizada por mais
de uma década, voltava a ser infernizada por seus velhos fantasmas. Quem esqueceu o naufrágio
wagueneriano do regime econômico argentino, arrastando ao
abismo De La Rúa, seus tenores e
barítonos? Exemplos adicionais
são o que não faltam, no Peru,
Equador, quase por toda a parte.
Quer isso dizer que estamos de
volta ao ponto de partida, eternamente condenados a repetir nossa
triste história de fracassos?
Não creio. Uma primeira diferença é que nem passa pela cabeça de ninguém convocar, para tomar conta do poder, os militares,
nem mesmo eles próprios. É bom
bater na madeira, mas quem sabe
podemos começar a acreditar que
superamos em definitivo ao menos esse tipo de falsa solução para
nossas mazelas? É verdade, dirão
alguns, mas não fizemos mais que
substituí-la pela permanente tentação do populismo. Terminada a
Guerra Fria, não contando mais
com a tolerância ou o apoio norte-americanos, a intervenção militar clássica dos anos 1960 e 1970,
a pretexto de combater o comunismo, não sobreviveu ao desaparecimento de uma ameaça plausível como foi, em seu tempo, a alternativa revolucionária cubana.
Em compensação, o populismo,
dependendo basicamente de fatores internos que lhe permitem a
legitimação eleitoral, continua a
vicejar, conduzindo a impasses
como os de Aristide, no Haiti, ou
de Fujimori, no Peru.
Mesmo assim, é preciso reconhecer que o desejo de consolidar
e ampliar a democracia vem revelando capacidade de resistência
coriácea, quase heróica, sobrevivendo a várias mortes sucessivas.
Quem imaginaria, por exemplo,
na Argentina machucada de
2002, quando ninguém mais
acreditava em políticos, partidos,
Congresso, juízes e só se falava em
comitês de vizinhos que, de repente, um político como Kirchner
surgisse de Província remota para
capturar a imaginação do povo e
restabelecer apoio maciço ao governo? E isso em país que já passara pela morte do sonho peronista, o sinistro pesadelo militar culminando com a dolorosa derrota
das Malvinas, o fracasso econômico de Alfonsín, seguido pela
ruína moral e financeira de Menem
Em grau maior ou menor, situações similares são encontráveis na história contemporânea
do Brasil e dos demais latino-americanos. Ao contrário dos indivíduos, que jamais se reerguem
de certos golpes esmagadores, as
sociedades ressuscitam, uma e
muitas vezes, das cinzas da esperança consumida. O que, aliás,
nos deve aconselhar prudência
contra a precipitação de concluir,
em momentos de crise, que as instituições estão irremediavelmente
comprometidas, sem possibilidade de resgate. O que se vê, tanto
na Argentina, como na Bolívia
pós-crise, é que a saída passa sempre pela reconstituição do sistema
político.
Aos poucos, vamos compreendendo que a democracia, bem como o desenvolvimento, se edificam dia a dia, num processo de
tentativa e erro de longo prazo, de
gerações, não de anos ou mandatos presidenciais. No fundo, a
construção da democracia abrange, em conceito amplo, o desenvolvimento pleno, entendido como a capacidade de governar e
administrar sociedades cada vez
mais complexas, com racionalidade econômica, mas também
justiça social, direitos humanos,
preservação ambiental. Trata-se
de processo de aprendizagem e
educação contínuas, em que o fator crucial é o aperfeiçoamento
cultural dos seres humanos. É
nesse sentido que Bolívar foi profético ao dizer que "um povo ignorante é a causa inconsciente de
sua própria destruição" e que a
"moral e as luzes são nossas primeiras necessidades básicas".
Para isso, a qualidade das instituições é decisiva. Foi o que compreenderam o professor Douglas
North e seus colegas da escola institucional, ganhadores do Prêmio
Nobel de Economia. Antes deles, é
o que vinha ensinando Celso Furtado, inovador na ênfase que desde cedo conferiu aos fatores culturais, históricos e estruturais como
componentes do desenvolvimento.
A história não é uma armadilha ou prisão da qual não se escapa, mas tem seu peso indisfarçável. Os caribenhos, por exemplo,
são tão pobres e subdesenvolvidos
como nós outros latinos e partilham com alguns de nós a comum
herança da escravidão. Souberam, contudo, preservar, em meio
a todas essas dificuldades, a democracia parlamentarista herdada da colonização inglesa.
Tão pouco se deve levar demasiado a sério o paradoxo de Chesterton, segundo o qual "a história
nos ensina que a história não nos
ensina nada". Em realidade, acaba-se por aprender algo com a
história, embora ela seja mestra
dura e impiedosa nos métodos de
inculcar suas lições. A Alemanha
e o Japão parecem ter abandonado para sempre o militarismo que
lhes valeu o desastre de Nuremberg e Hiroshima. A Espanha pós-Franco não reeditou a Guerra Civil, os franceses e alemães cogitam não revanches, mas união
mais profunda, e o mundo nunca
mais repetiu a crise da Grande
Depressão de 1929 e década seguinte.
Em resumo, como diria o poeta,
de tudo sempre fica um pouco. Esperemos que esse pouco nos sirva
na América Latina para ultrapassar de vez o populismo, autoritário ou carismático, após termos
virado (oxalá!) a página do intervencionismo militar.
A absoluta centralidade de instituições sólidas e eficazes, o papel
de Sérgio Vieira de Mello e da
ONU na construção institucional,
é o tema sobre o qual tenciono falar amanhã cedo na conferência
do Instituto Braudel. Quarenta
anos atrás, ao dirigir-se à Assembléia Geral da ONU, Paulo 6º descreveu a igreja como "especialista
em humanidade". A ONU é "especialista em desespero", e Sérgio,
expressão mais completa da nova
e difícil especialidade, deu sua vida quando começava a curar um
dos casos mais intratáveis dessa
enfermidade.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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