São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

PT: ética e política

ALOIZIO MERCADANTE

O cineasta polonês Andrzej Wajda tem um filme extraordinário, cuja lembrança é oportuna neste momento em que são discutidas as relações entre ética e política. Intitula-se "Danton" e narra os acontecimentos da primavera de 1794, quando a Revolução Francesa já tinha submergido no terror.
Nele, há dois grandes e densos personagens: Danton e Robespierre, os quais simbolizam formas antagônicas de combinar atividade política com princípios éticos. Danton é pragmático, conciliador e sensível. Abomina a morte e o sofrimento trazidos pela radicalização da Revolução. É revolucionário, mas moderado, e quer adaptar os abstratos ideais da Revolução às necessidades imediatas e concretas do povo. Robespierre é, ao contrário de Danton, idealista, frio e intransigente. Vê a Revolução como um processo de purificação, no qual não há lugar para as fraquezas humanas. O povo é que deve adequar-se aos rígidos princípios revolucionários.
Na cena principal do filme, Robespierre ameaça Danton por opor-se à sua visão pura e rigidamente ordenada da Revolução. Danton, em desespero, grita: "Te esqueces de que somos feitos de carne e osso". Mais tarde, Robespierre manda executar Danton. Mata-se o humano na política. Robespierre, ao não saber conciliar, de forma sadia, ética com política, vê-se condenado à ética da intransigência e ao esquecimento político: na sua amada Paris não há praça ou rua com seu nome.
Ora, o PT sempre foi acusado por seus detratores de ser um partido de jacobinos, que, como o Robespierre de Wajda, perseguia a utópica pureza política, mas alcançava apenas a ética da intransigência. Agora, entretanto, ante o rumoroso caso Waldomiro Diniz, esses mesmos detratores acusam o PT de ser um "partido sem ética" que sucumbiu ao toma-lá-da-cá tão condenado por todos os cidadãos. Afirmam, com a convicção típica dos néscios, que, para chegar ao poder, o PT teve de abandonar os princípios que o diferenciavam no cenário da política nacional.
Estão não somente criticando o PT mas também ofendendo o país. É como se dissessem: "No Brasil, não dá para fazer política de mãos limpas". Enganam-se. Nas últimas duas décadas, embora tenha progredido pouco do ponto de vista socioeconômico, o país evoluiu muito no que tange aos mecanismos de transparência e controle do aparelho de Estado.
Com efeito, o processo de consolidação do sistema democrático no país resultou em uma sociedade civil vigilante e em uma burocracia mais transparente. A luta pelo trato correto da coisa pública vem coibindo antigas práticas de corrupção. As denúncias investigadas em período recente, relativas, entre outros, aos casos "Operação Anaconda", "Gafanhotos de Roraima" e fiscais do Rio de Janeiro e do Amazonas são provas do sólido compromisso governamental com o combate à corrupção. Tal combate confunde-se com a própria história do PT e foi nele que a sociedade brasileira vislumbrou aliado mais dedicado à causa da transparência. Por isso, o PT empenhou-se e empenha-se tanto em cobrar e fiscalizar. Não o fez, como o Robespierre de Wajda, por purismo ético e intransigência política, mas por entender que a luta contra a corrupção era e é essencial para o aprimoramento da democracia brasileira e para a transformação do Estado em verdadeiro ente público.
Porém o PT não se limitou a fiscalizar. O PT praticou, em dezenas de administrações municipais e estaduais bem-sucedidas, aquilo que cobrava dos outros: trato correto da coisa pública. O PT demonstrou que é possível, sim, fazer política com mãos limpas no Brasil. E foi esse patrimônio ético-político, construído ao longo de mais de duas décadas, tanto na oposição como na situação, que consagrou o PT. De fato, ao contrário do que dizem os seus detratores, o PT não chegou ao poder central graças apenas a marketing eleitoral eficiente. O PT ganhou pelo exemplo. Exemplo que não implica monopólio da ética, mas que revela destaque numa luta que é de todos. Assim, temos a certeza de que o PT e o governo Lula saberão vencer o desafio apresentado pelo caso Waldomiro Diniz e manter o seu lugar de mérito na simbologia política brasileira. Confiamos no trabalho da Polícia Federal e do Ministério Público e temos convicção de que o caso será investigado até as últimas conseqüências, com punição exemplar de todos os envolvidos, ao contrário do ocorrido em episódios graves de governos passados. Esse é um compromisso público do PT e do governo Lula, que tem de ser acompanhado por uma agenda positiva em torno das reformas política e do Judiciário, as quais introduzirão aprimoramentos fundamentais para a democracia brasileira, especialmente o financiamento público de campanhas.
Hoje, o PT tem muito do Danton de Wajda: sabe negociar, compor e ceder. Sabemos que tais qualidades são essenciais na política. Mas também sabemos que a combinação sadia de ética com política é vital para a democracia brasileira. Nesse aspecto, embora nunca tenha sido purista e intransigente como o Robespierre do filme, o PT tem compromisso histórico inarredável com a ética. Por isso, o PT sairá fortalecido do episódio. E aos nossos detratores restará somente a constatação óbvia de que o humano, com sua inevitável falibilidade, também habita o PT.


Aloizio Mercadante, 49, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo e líder do governo no Senado Federal.

Internet: www.mercadante.com.br

E-mail -
mercadante@mercadante.com.br



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