São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

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TENSÃO ENTRE VIZINHOS/ARTIGO

Morales corre risco com nacionalização

ÉRICA FRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES

Não é de espantar que a nacionalização do setor de gás seja questão de honra para a população boliviana e de sobrevivência política para o presidente Evo Morales. Qualquer análise dos indicadores do país desemboca na importância do produto. O problema é que essa significância pode ser minada de forma drástica caso o gás boliviano perca espaço no Brasil, seu principal mercado de exportação -o que leva à conclusão de que Morales está colocando a economia sob risco.
Com um PIB (Produto Interno Bruto) per capita estimado em US$ 1.000 em 2005, a Bolívia é o país mais pobre da América do Sul. Várias fraquezas seguirão limitando as perspectivas do país. Mas um dos seus principais problemas estruturais -a alta dependência da exportação de poucas commodities- ganhou ares de virtude nos últimos quatro anos graças a uma demanda global aquecida e preços em alta. E representa, no médio prazo, esperança para uma melhora das condições socioeconômicas.
Surfando na mesma onda que beneficiou outros países da América Latina, a Bolívia vem tendo uma melhora significativa em suas contas externas. Sofrendo até o passado recente de problema crônico de déficits em conta corrente (saldo das relações de troca de bens, serviços e renda), a Bolívia passou a registrar superávits desde 2003. No ano passado, o indicador atingiu um recorde de 5% do PIB. A principal razão para a melhora foi uma reversão na balança comercial -ficou positiva.
O volume de exportações também disparou, ao crescer a uma média de 13,3% entre 2003 e 2005. Com isso, as exportações passaram a ser o principal motor da expansão do PIB, que, em 2005, atingiu 4,1% pelo segundo ano seguido, nível ainda baixo, mas duas vezes maior que a média registrada entre 1980 e 2003.
As vendas de gás para o Brasil viraram o principal motor do setor externo. As vendas de hidrocarbonetos (dos quais gás natural é 95% do total) para o Brasil representaram 1% das exportações da Bolívia em 1999, ano de inauguração do gasoduto que liga os países. Em junho de 2005, esse percentual havia saltado a 37%. O Brasil comprava, em meados de 2005, 75% dos hidrocarbonetos bolivianos, e a Argentina, 17%.
A percepção de melhora que a economia tem, no entanto, contrasta com os baixos indicadores sociais do país. Em 2003, 67,3% da população vivia na pobreza.
O problema é que o caminho para melhorar indicadores socioeconômicos tão baixos é longo e a população boliviana perdeu a paciência há quatro anos, passando a exigir, entre outros, a nacionalização do setor de gás. Uma elevação dos impostos de 18% para 50% sobre a produção de gás e petróleo, com a aprovação da Lei de Hidrocarbonetos, em 2005, já tinha garantido melhora substancial nas contas do governo. O déficit fiscal caiu de 5,5%, em 2004, para 2,1%, em 2005.
Com o decreto da última segunda, que elevou impostos novamente, o governo Morales diz pretender aumentar ao máximo possível os retornos que o Estado pode ter com a comercialização do gás para ampliar seus gastos sociais. O canal escolhido foi a imposição de mudança radical nas regras para empresas estrangeiras que operam no país, sendo a Petrobras a principal. Mas o risco da estratégia é enorme, já que são grandes as chances de a Bolívia sair perdendo caso Morales imponha seu decreto de nacionalização ao pé da letra.
Se a Petrobras cumprir seu anúncio de suspender investimentos na Bolívia e buscar fontes alternativas ao gás boliviano, é difícil imaginar para quem o país poderá vender o produto (até porque a Argentina pode seguir o mesmo caminho). Como o mercado da commodity tem um aspecto fortemente regional, em razão da dificuldade de transporte, Morales teria de buscar opções na vizinhança. Mas a Venezuela não precisa de gás, o Peru tem a commodity em abundância e as históricas divergências com o Chile dificultam acordos com o país.

Resistência
A falta de tecnologia e de acesso ao mar limita as chances de a Bolívia partir para a produção de gás natural liquefeito. O risco para as exportações é ressaltado por problemas que ameaçam outros produtos, em conseqüência, entre outras coisas, da resistência de Morales em negociar acordos com os EUA.
Se por um lado as exportações correm riscos, por outro a incerteza gerada pela instabilidade política na Bolívia nos últimos anos levou o país a sofrer, pela primeira vez em 15 anos, saída líquida de investimento estrangeiro direto em 2005. Empresas passaram a reduzir sua exposição ao país por meio de empréstimos dados pelas subsidiárias na Bolívia às matrizes no exterior. Todos os setores -menos mineração- receberam menos recursos de fora em 2005 do que no ano anterior.
Uma redução estimada do ritmo de crescimento do comércio mundial e dos preços de commodities levará a uma desaceleração natural da expansão na Bolívia em 2006 e 2007. Caso a tendência de queda nos fluxos de investimento continue, o crescimento do PIB poderá ser mais afetado. E o impacto poderá ser agravado se essa redução for acompanhada de queda nas exportações.

Jogo político
Os riscos que rondam a Bolívia levam a crer que Morales ainda pode ceder ao pragmatismo e que o tom duro do decreto de nacionalização seja, em parte, jogo político de curto prazo.
Morales, que tomou posse em janeiro, está sob pressão para começar a cumprir suas promessas. O primeiro grande desafio no curto prazo -a eleição da Assembléia Constituinte- está marcado para 2 de julho. A estratégia de Morales com o decreto parece ser manter a popularidade alta o suficiente para que seu partido, o MAS (Movimiento al Socialismo), tenha bom desempenho na eleição.
Passada a eleição da Constituinte, Morales pode ganhar fôlego político para renegociar novos contratos -que têm de ser assinados em seis meses- com as empresas estrangeiras. O governo boliviano não vai abrir mão de aumentar, significativamente, sua participação e ganhos no mercado de gás. Isso ficou claro. Mas, se considerar os riscos que a imposição do decreto ao pé da letra traz para a economia, tende a ser mais moderado em pontos como a renegociação de preços. Caso contrário, Morales poderá até sobreviver politicamente até o fim do mandato, já que os efeitos nocivos da queda de investimentos e de uma possível estagnação (ou redução) das exportações para o Brasil só seriam sentidos em três ou quatro anos. Mas correrá o risco de ficar marcado como um governante que desperdiçou oportunidade histórica para o país.


Érica Fraga é analista de América Latina da consultoria britânica Economist Intelligence Unit.


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