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TENSÃO ENTRE VIZINHOS/ARTIGO
Morales corre risco com nacionalização
ÉRICA FRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES
Não é de espantar que a nacionalização do setor de gás
seja questão de honra para a população boliviana e de sobrevivência política para o presidente
Evo Morales. Qualquer análise
dos indicadores do país desemboca na importância do produto. O
problema é que essa significância
pode ser minada de forma drástica caso o gás boliviano perca espaço no Brasil, seu principal mercado de exportação -o que leva à
conclusão de que Morales está colocando a economia sob risco.
Com um PIB (Produto Interno
Bruto) per capita estimado em
US$ 1.000 em 2005, a Bolívia é o
país mais pobre da América do
Sul. Várias fraquezas seguirão limitando as perspectivas do país.
Mas um dos seus principais problemas estruturais -a alta dependência da exportação de poucas commodities- ganhou ares
de virtude nos últimos quatro
anos graças a uma demanda global aquecida e preços em alta. E
representa, no médio prazo, esperança para uma melhora das condições socioeconômicas.
Surfando na mesma onda que
beneficiou outros países da América Latina, a Bolívia vem tendo
uma melhora significativa em
suas contas externas. Sofrendo até
o passado recente de problema
crônico de déficits em conta corrente (saldo das relações de troca
de bens, serviços e renda), a Bolívia passou a registrar superávits
desde 2003. No ano passado, o indicador atingiu um recorde de 5%
do PIB. A principal razão para a
melhora foi uma reversão na balança comercial -ficou positiva.
O volume de exportações também disparou, ao crescer a uma
média de 13,3% entre 2003 e 2005.
Com isso, as exportações passaram a ser o principal motor da expansão do PIB, que, em 2005,
atingiu 4,1% pelo segundo ano seguido, nível ainda baixo, mas
duas vezes maior que a média registrada entre 1980 e 2003.
As vendas de gás para o Brasil
viraram o principal motor do setor externo. As vendas de hidrocarbonetos (dos quais gás natural
é 95% do total) para o Brasil representaram 1% das exportações
da Bolívia em 1999, ano de inauguração do gasoduto que liga os
países. Em junho de 2005, esse
percentual havia saltado a 37%. O
Brasil comprava, em meados de
2005, 75% dos hidrocarbonetos
bolivianos, e a Argentina, 17%.
A percepção de melhora que a
economia tem, no entanto, contrasta com os baixos indicadores
sociais do país. Em 2003, 67,3% da
população vivia na pobreza.
O problema é que o caminho
para melhorar indicadores socioeconômicos tão baixos é longo
e a população boliviana perdeu a
paciência há quatro anos, passando a exigir, entre outros, a nacionalização do setor de gás. Uma
elevação dos impostos de 18% para 50% sobre a produção de gás e
petróleo, com a aprovação da Lei
de Hidrocarbonetos, em 2005, já
tinha garantido melhora substancial nas contas do governo. O déficit fiscal caiu de 5,5%, em 2004,
para 2,1%, em 2005.
Com o decreto da última segunda, que elevou impostos novamente, o governo Morales diz
pretender aumentar ao máximo
possível os retornos que o Estado
pode ter com a comercialização
do gás para ampliar seus gastos
sociais. O canal escolhido foi a imposição de mudança radical nas
regras para empresas estrangeiras
que operam no país, sendo a Petrobras a principal. Mas o risco da
estratégia é enorme, já que são
grandes as chances de a Bolívia
sair perdendo caso Morales imponha seu decreto de nacionalização ao pé da letra.
Se a Petrobras cumprir seu
anúncio de suspender investimentos na Bolívia e buscar fontes
alternativas ao gás boliviano, é difícil imaginar para quem o país
poderá vender o produto (até
porque a Argentina pode seguir o
mesmo caminho). Como o mercado da commodity tem um aspecto fortemente regional, em razão da dificuldade de transporte,
Morales teria de buscar opções na
vizinhança. Mas a Venezuela não
precisa de gás, o Peru tem a commodity em abundância e as históricas divergências com o Chile dificultam acordos com o país.
Resistência
A falta de tecnologia e de acesso
ao mar limita as chances de a Bolívia partir para a produção de gás
natural liquefeito. O risco para as
exportações é ressaltado por problemas que ameaçam outros produtos, em conseqüência, entre
outras coisas, da resistência de
Morales em negociar acordos
com os EUA.
Se por um lado as exportações
correm riscos, por outro a incerteza gerada pela instabilidade política na Bolívia nos últimos anos
levou o país a sofrer, pela primeira
vez em 15 anos, saída líquida de
investimento estrangeiro direto
em 2005. Empresas passaram a
reduzir sua exposição ao país por
meio de empréstimos dados pelas
subsidiárias na Bolívia às matrizes
no exterior. Todos os setores
-menos mineração- receberam menos recursos de fora em
2005 do que no ano anterior.
Uma redução estimada do ritmo de crescimento do comércio
mundial e dos preços de commodities levará a uma desaceleração
natural da expansão na Bolívia
em 2006 e 2007. Caso a tendência
de queda nos fluxos de investimento continue, o crescimento
do PIB poderá ser mais afetado. E
o impacto poderá ser agravado se
essa redução for acompanhada de
queda nas exportações.
Jogo político
Os riscos que rondam a Bolívia
levam a crer que Morales ainda
pode ceder ao pragmatismo e que
o tom duro do decreto de nacionalização seja, em parte, jogo político de curto prazo.
Morales, que tomou posse em
janeiro, está sob pressão para começar a cumprir suas promessas.
O primeiro grande desafio no
curto prazo -a eleição da Assembléia Constituinte- está
marcado para 2 de julho. A estratégia de Morales com o decreto
parece ser manter a popularidade
alta o suficiente para que seu partido, o MAS (Movimiento al Socialismo), tenha bom desempenho na eleição.
Passada a eleição da Constituinte, Morales pode ganhar fôlego
político para renegociar novos
contratos -que têm de ser assinados em seis meses- com as
empresas estrangeiras. O governo
boliviano não vai abrir mão de
aumentar, significativamente, sua
participação e ganhos no mercado de gás. Isso ficou claro. Mas, se
considerar os riscos que a imposição do decreto ao pé da letra traz
para a economia, tende a ser mais
moderado em pontos como a renegociação de preços. Caso contrário, Morales poderá até sobreviver politicamente até o fim do
mandato, já que os efeitos nocivos
da queda de investimentos e de
uma possível estagnação (ou redução) das exportações para o
Brasil só seriam sentidos em três
ou quatro anos. Mas correrá o risco de ficar marcado como um governante que desperdiçou oportunidade histórica para o país.
Érica Fraga é analista de América
Latina da consultoria britânica
Economist Intelligence Unit.
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