São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENSÃO ENTRE VIZINHOS

Assessor de Lula critica intervenções de Chávez e nega motivação ideológica na política externa brasileira

Não queremos Guerra Fria na AL, diz Garcia

KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia diferencia a política externa brasileira da pregação anti-EUA do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. "Não queremos na América Latina um clima de Guerra Fria." Ele afirma que, na crise do gás, a Bolívia tem "menos alternativas" do que o Brasil, pois não teria como vender seu produto a outro país.
Garcia defende a "reação prudente" de Lula ante a decisão do presidente da Bolívia, Evo Morales, de nacionalizar as reservas de hidrocarbonetos (petróleo e gás).
Nega que "razões ideológicas" movam a política externa brasileira. "A política externa para a América do Sul e para o resto do mundo não está movida pelo prefixo "anti". Não somos "anti" ninguém. Somos "pró'", diz, marcando diferenças com o venezuelano.
Segundo Garcia, Chávez é "voluntarioso", mas um presidente com o qual ele e Lula têm liberdade para tecer críticas "na condição de amigos". Afirma que Venezuela e Brasil possuem "abordagens diferentes da política latina". Considera ainda que "determinadas intervenções" de Chávez "em determinados momentos" não lhe "parecem as mais adequadas".
Leia a seguir trechos da entrevista, concedida na sexta.
 

Folha - O Brasil tem alternativa caso não chegue a um acordo com a Bolívia? Quais?
Marco Aurélio Garcia -
Pode fazer opções pelo gás líquido. E a Bolívia tem alternativa? Há dependência do Brasil, há. Há dependência da Bolívia, há. A maior parte da produção de gás da Bolívia é exportada para o Brasil. Se deixássemos de importar, a Bolívia teria um gigantesco problema.

Folha - A Bolívia tem menos alternativas do que o Brasil?
Garcia -
Tão poucas quanto nós. No limite, menos alternativas do que nós. Não só matariam a galinha dos ovos de ouro. Mas também terão problemas graves por razões de natureza técnica. No processo de extração do gás se faz a separação dos combustíveis líquidos. Se não exportam gás, teriam de queimá-lo, e eles não têm mecanismos para isso. Eles se veriam privados de gasolina, diesel e outros derivados. Mas nós vamos nos entender. Não queremos chegar a um impasse.

Folha - Lula se queixou a Morales de não ter sido avisado e da forma da nacionalização?
Garcia -
Esse tipo de comportamento não corresponde ao nível de relação que o Brasil mantém na América Latina, em especial com a Bolívia. Não se justificava.

Folha - Lula deixou isso claro para Morales em Porto Iguazú?
Garcia -
Absolutamente claro.

Folha - Morales respondeu?
Garcia -
Deu resposta satisfatória. De certa forma, reconheceu [que deveria ter avisado Lula].

Folha - Lula apoiou Morales na eleição, que sempre disse que faria o que fez. O Brasil realmente foi pego de surpresa?
Garcia -
O presidente da República não apóia candidatos em outros países. Manifestou simpatias que nunca foram ocultadas. Todos os candidatos na Bolívia defendiam a medida [nacionalização dos hidrocarbonetos], inclusive o candidato caracterizado como de direita. Esse problema teria se colocado para o Brasil qualquer que fosse o vencedor da eleição.

Folha - Lula teme efeito eleitoral, um "apagão" do gás"?
Garcia -
Não haverá "apagão" de gás. Nem há temor de impacto eleitoral. Tenho visto muitas vezes uma crítica que não oferece alternativa e que pretende atribuir à política externa brasileira responsabilidade sobre esse episódio, o que é um erro. A política externa ajudará a resolver o problema. Outros que estão escrevendo a respeito tiveram, no passado, responsabilidade diplomática. Porém naquele tempo se revelaram servis nas suas relações com os países poderosos.

Folha - A União é acionista majoritária da Petrobras. A Bolívia anunciou que em 180 dias expropriará o controle de seus bens no país. Morales invadiu instalações com o Exército. A reação do Brasil não foi tímida?
Garcia -
Não houve invasão nem ocupação. As instalações foram cercadas, não invadidas. Mesmo assim, achamos que foi uma ação desnecessária.

Folha - O Brasil não deveria ter reagido com mais força?
Garcia -
Todas as críticas são legítimas. Essa é uma crise grave porque afeta o abastecimento do país. Não queremos operar de forma irresponsável. No passado, outros governos trabalharam de forma irresponsável a questão energética.
A reação do Brasil foi prudente. O momento não é para fazer bravata. É engraçado que quem sempre baixou a cabeça para os poderosos fique preocupado agora com nossa atitude prudente em relação a um país pequeno como a Bolívia. É engraçado. Ficaram bravos com os tanques na porta da Petrobras na Bolívia, mas eles, quando estiveram no poder, puseram tanques na Petrobras aqui.

Folha - No governo FHC, em 1995, na greve dos petroleiros?
Garcia -
Isso. Quem sabe deve ter havido até um conselho [de FHC a Morales, diz com ironia].

Folha - No governo, há quem suspeite que Hugo Chávez tenha estimulado Morales e que tente tutelar o presidente da Bolívia. O sr. concorda com essa avaliação?
Garcia -
Não. O presidente Chávez é um homem sabidamente muito voluntarioso. Dá a suas iniciativas caráter forte. Chávez tem relação boa conosco, de antes do início do governo. Há uma cooperação importante com a Venezuela. Temos abordagens diferentes da política latina.

Folha - A revista britânica "The Economist" diz que o episódio Bolívia é uma vitória de Chávez sobre a política externa de Lula. Seria uma vitória que reforçaria uma tentativa do venezuelano de construir uma aliança anti-EUA na América Latina. O sr. concorda?
Garcia -
Não sei se ele tem esse projeto de construir uma aliança anti-EUA. Sei que os EUA têm problemas com ele, e ele, com os EUA. Lula tem enfatizado que há um tom inadequado na relação entre os dois países.
O que interessa ao governo Lula é que essa tensão pudesse diminuir. Não queremos na América Latina um clima de Guerra Fria. Até porque a Guerra Fria já acabou. A política externa do Brasil para a América do Sul e para o resto do mundo não está movida pelo prefixo "anti". Não somos "anti" ninguém. Somos "pró".

Folha - O sr. disse que Chávez é voluntarioso. Sua retórica bolivariana para conquistar aliados não está dividindo a América Latina, em vez de unificá-la?
Garcia -
Se me perguntar se estou de acordo com a retórica de Chávez, direi que em muitos aspectos não. Tenho a liberdade de dizer isso a ele e já disse.

Folha - Em quais aspectos?
Garcia -
Determinadas intervenções que Chávez faz em determinados momentos não me parecem as mais adequadas. E digo para ele, como Lula diz para ele, na condição de amigos.


Texto Anterior: Tensão entre vizinhos/artigo: Morales corre risco com nacionalização
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.