São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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E LA NAVE VA

Cafés, cinemas e restaurantes, hábitos essenciais, seguem cheios

Argentinos enfrentam a crise sem perder seu famoso estilo

Silvio Cioffi - 24.jun.2002/Folha Imagem
Casa colorida no Caminito, rua turística da Boca, na cidade de Bueno Aires


DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Passar quatro dias em Buenos Aires é uma surpresa; afinal, se ouve tanto falar do risco de o Brasil se tornar uma nova Argentina que é quase um ato de coragem pegar um avião e ir até lá. Claro que tive visão de turista, mas convivi com vários amigos da classe média que não estão na miséria (já que têm emprego), mas só podem tirar 300 pesos do banco por semana.
Eles me contaram que, quando foi instituído o curralzinho, o susto foi tão grande que nem jornais compravam mais; depois, foram se adaptando à nova realidade. Uma amiga me contou que num domingo, na época da barra mais pesada da crise, foi ao zoológico com o filho e percebeu que eram as duas únicas pessoas no jardim inteiro.

Casamento
Uma historinha verdadeira: um economista argentino estava viajando, mas teve uma desconfiança. Ligou para a mulher (minha amiga) pedindo que ela tirasse todo o dinheiro que estava no banco, economias de uma vida inteira: US$ 200 mil. Ela simplesmente esqueceu; dois dias depois veio o curralzinho. Ele chegou da viagem muito bem-humorado, e ela teve que contar -claro. Ele se encostou num móvel, baixou a cabeça e ficou 30 minutos assim, em silêncio. Saiu sem dizer uma palavra e só voltou dez horas depois.
Ela me disse -confidencialmente- que preferia ter sido encontrada na cama com outro homem. Detalhe: o casamento continua ótimo.
Os argentinos abandonaram completamente os supérfluos e ficaram só com o essencial. Essencial, para eles, é sair e frequentar cinemas, teatros e restaurantes. Os proprietários, realistas, baixaram um pouco os preços e os cinemas, os teatros e os restaurantes seguem lotados. Claro: melhor ganhar menos e continuar com a casa cheia.

Cafés
Buenos Aires é uma cidade linda e faz parte da cultura local frequentar os cafés -que são centenas, como em Paris-, onde as pessoas entram e saem o dia inteiro. Alguns ficam horas lendo um jornal ou um livro. Um dos cafés mais famosos é o La Biela, na Recoleta, onde nas tardes de sábado e domingo é preciso esperar para conseguir mesa. Na banca de jornais mais próxima, exemplares de "Le Figaro", "Miami Herald", "Le Monde", "L'Equipe".
Um uísque -eles tomam o nacional- custa 2 pesos, cerca de US$ 0,60. Um jantar para quatro, num bom restaurante -com entrada, prato principal, duas garrafas de vinho e café- sai 90 pesos, US$ 23. As pessoas bebem vinhos mais baratos -nos supermercados há garrafas de até 2 pesos-, deixaram de lado os produtos mais caros e andam de metrô -o que aliviou enormemente o trânsito. Estão vivendo mais modestamente, mas estão todos na rua.

Traje de gala
Desde a crise, o Teatro Colón, um dos mais lindos da América do Sul, liberou o traje de gala (smoking para os homens e vestido longo para as damas), mas ninguém vai de jeans e tênis. Os homens usam terno escuro e a informalidade não passa daí.
Na avenida Alvear, uma das mais elegantes da cidade, uma imobiliária oferece apartamentos, todos com dois preços: o de antes e o de depois. Um que custava US$ 850 mil está por US$ 500 mil; o de US$ 195 mil, por US$ 105 mil, e um deles começou sendo oferecido por US$ 205 mil, passou para US$ 125 mil e agora está por US$ 89 mil. Todos grandes, alguns imensos, nas melhores áreas da cidade.

Pedinte "chique"
Mudaram as prioridades e o supérfluo não vende, a não ser para os turistas; mas é doloroso ver senhoras e senhores bem vestidos, com seus sapatos de couro -velhos, mas engraxados-, suéter e sobretudo, pedindo, no maior constrangimento, "un peso, por favor". Mas são poucos; muito menos do que nas ruas do Rio ou de São Paulo.
O país não esquece seus ídolos, que continuam os mesmos: Fangio -campeão de automobilismo-, Leguisamo -talvez o mais famoso jóquei do mundo-, Borges, o escritor, Guevara, Evita, Maradona e Gardel, claro (que morreu em 1935).
Os argentinos estão muito simpáticos: ouvi vários declarando que estão torcendo pelo Brasil na Copa -e agradecendo nossa vitória sobre a Inglaterra.
Detalhe: quando cheguei, no sábado de manhã, troquei no aeroporto US$ 130. Com esse dinheiro paguei meus táxis, almocei, jantei, tomei meus vinhos, e quando peguei o avião de volta na tarde de terça-feira ainda tinha dinheiro na carteira.
A Argentina está vivendo um momento de crise, mas seu povo não perdeu o estilo.



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