São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Post mortem

RUBENS RICUPERO

"O povo", disse Jânio Quadros, "ama os governos ásperos". Essa suposta inclinação masoquista não será verdade tão absoluta, mas a frase se aplicaria perfeitamente à escolha de Nixon, em vez de Humphrey, de Reagan, em lugar de Carter, e de Bush, de preferência a Kerry. Nesses três casos, um republicano "duro" suplantou um democrata brando ou mais refletido.
Duro em relação a quê? Obviamente em termos do tratamento que mereceriam os inimigos externos. Com efeito, em todos esses episódios, o fator que pesou na eleição não foi a economia, mas a segurança: a Guerra do Vietnã, no primeiro; a ameaça soviética, a captura dos reféns americanos no Irã e a guerrilha na América Central, na vitória de Reagan em 1980; o Iraque e o terrorismo de Al Qaeda, agora.
A repetição do resultado, embora o perigo externo mude de figura ou localização geográfica, sugere que se trata de um padrão, não de incidentes isolados. Toda vez que se sente ameaçado, o eleitorado americano prefere, por instinto, as respostas simples e musculosas às propostas complexas e matizadas. Ao declarar, logo no início da campanha, que concordava basicamente com o presidente em relação ao terrorismo, mas que faria melhor, se eleito, Kerry liquidou, de saída, a possibilidade de oferecer alternativa credível. Desde então, as sondagens indicavam invariavelmente que, na questão de segurança, os americanos confiavam mais em Bush.
Se olharmos a floresta, e não as árvores individuais, o que vemos emergir, por trás de cada um desses episódios eleitorais, é a tendência dos Estados Unidos para posições cada vez mais conservadoras, à direita do espectro. A última vez em que a ala progressista do Partido Democrata, chamada de liberal nos EUA, conquistou a Casa Branca foi em 1960, quase há meio século, com a eleição apertada e controvertida de Kennedy.
Nos últimos 44 anos, os únicos democratas a chegar à Presidência foram todos oriundos do sul -Johnson (Texas), Carter (Geórgia), Clinton (Arkansas)- e provenientes da centro-direita, apesar de Johnson ter realizado a avançada política social da "Great Society", uma espécie de canto do cisne do "New Deal" rooseveltiano. Essa afirmação do conservadorismo acompanhou o declínio demográfico e econômico do velho cinturão industrial do nordeste e do leste americanos, em favor da ascensão do sul -Flórida e Geórgia, sobretudo- e do sudoeste -Colorado, Arizona, Novo México.
Como toda onda de fundo destinada provavelmente a durar longo tempo, esse é um fenômeno histórico de causalidade complexa. Algumas de suas causas foram já aqui evocadas: as demográficas, econômicas, de segurança. Há outras, porém. Na perda do sul pelo Partido Democrata, foi decisivo o fator racial. Ao apoiar com coragem a dessegregação, a luta pelos direitos civis e a ação afirmativa, o governo democrata de Johnson cometeu suicídio político, glorioso, se quiserem, mas suicídio de qualquer forma.
Tudo isso é mais ou menos conhecido e comentado, mas há um aspecto, o cultural, na acepção ampla, que tem merecido pouca atenção. Raros notaram a coincidência de que 1968, o apogeu da rebelião da juventude, da revolução de costumes sexuais, do movimento hippie, dos macrofestivais de rock como o de Woodstock, da era psicodélica das drogas, marca também o início da reação conservadora, simbolizada pela eleição de Nixon. A princípio marginal e periférica, a direita religiosa, os pastores evangélicos armados de formidável rede de rádios e TV, vão se converter gradualmente em elemento de peso decisivo, reforçado pela aliança com os intelectuais hiper-reacionários, eufemisticamente batizados de neoconservadores.
Não é exagero afirmar que, em conseqüência, a cultura de direita nascida dessa estranha simbiose tornou-se hegemônica nos Estados Unidos. Ela se manifesta nos mais diversos campos. Na economia, onde prevalece um capitalismo duro e puro, minimalista em proteção médica e social, maximalista em competição exacerbada. Numa política exterior em que a diplomacia tende a ser militarizada, banalizando a guerra, não mais encarada como "ultima ratio". No extenso uso da pena de morte e longas penas de prisão, a fim de combater a criminalidade. Na tendência a criminalizar o aborto, a fazer retroceder as conquistas das minorias sexuais, na mistura entre religião e política, na defesa intransigente da posse de armas, na suspensão de garantias de defesa aos suspeitos de terrorismo, na intolerância com os dissidentes, na colaboração e na cumplicidade da imprensa.
Será ainda preciso lembrar a oposição ao Protocolo de Kyoto, o abandono da causa ambientalista? A lista é interminável, mas os exemplos bastam para mostrar que é um problema de sociedade, de mudança cultural, que mergulha muito mais fundo do que a mera disputa Bush-Kerry.
A chegada ao poder do segundo Bush, em 2000, é conseqüência, não causa dessa mudança, embora a tenha agravado, com a ajuda do trauma provocado pelos atentados do 11 de Setembro.
Uma eventual derrota do presidente teria atenuado a tendência e modificado o estilo, mas não a alteraria em substância. Se quisermos evitar ilusões, precisamos entender por que os americanos preferem governos ásperos, o que exige reconhecer, gostemos ou não, que, ao menos por ora, a direita política e cultural é hegemônica na única superpotência do mundo.


Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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