São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Transição e mudança

ALOIZIO MERCADANTE

Tornou-se lugar-comum afirmar que a política econômica do governo Lula representa a continuidade daquela implementada pela administração Fernando Henrique Cardoso. Essa avaliação, a meu juízo, envolve um duplo equívoco.
Primeiro, passa por alto as mudanças introduzidas em aspectos relevantes da gestão econômica, que se refletem na evolução dos indicadores de desempenho da economia brasileira. As tendências estruturais sedimentadas ao longo do período 1995-2002 apontavam para uma trajetória de ruptura econômica, social e financeira. Essa ruptura não se materializou porque alguns de seus vetores foram neutralizados ou revertidos pelo governo Lula em pouco mais de um ano e meio. Se não, vejamos:
Estagnação da economia: na média do período 1995-2002, a formação bruta de capital caiu 11% e o PIB cresceu 2,3% ao ano, além de, em quatro dos últimos cinco anos da era FHC, o PIB por habitante ter tido um crescimento praticamente nulo ou negativo. Hoje o PIB está crescendo em torno de 4,7% e a produção industrial já acumula, até agosto, crescimento de 8,8%, tendo o segmento de bens de capital atingido a marca de 26,2%.
Desemprego crescente: a taxa de desemprego aberto aumentou 35,4% entre 1995 e 2002, paralelamente à precarização do emprego e à redução do número de assalariados. Em 2004, de janeiro a setembro, foi gerado 1,6 milhão de empregos formais, paralelamente à redução, nos últimos seis meses, da taxa de desemprego aberto.
Redução de salários e aumento da desigualdade social: o rendimento médio real dos ocupados diminuiu no governo FHC, particularmente no quadriênio 1999-2002 (queda de 6,3% por ano). Essa trajetória foi interrompida a partir de novembro de 2003, com a recuperação progressiva dos rendimentos.
Insustentabilidade do processo de endividamento externo: entre 1995 e 2002, os encargos totais do passivo externo (amortizações + juros + lucros e dividendos), como porcentagem das exportações, passaram de 50,6% para 86,8% e a relação dívida externa/PIB saltou de 27,3% para 50,5%. Hoje estão sendo gerados saldos comerciais recordes (US$ 28 bilhões até outubro do corrente ano), e o risco-país caiu a menos de 500 pontos.
Insustentabilidade do processo de endividamento público: os juros da dívida pública representaram, na média do período 1995-2002, 8,9% do PIB, com o que esta praticamente dobrou em termos líquidos. O governo Lula estabilizou a relação dívida/PIB sem vender patrimônio público e aumentar a carga tributária.
O segundo equívoco é a redução, simplista, da política econômica à dimensão monetário-financeira, área na qual a situação de endividamento externo e de extrema vulnerabilidade a que foi conduzido o país pelo governo anterior limita o raio de manobra do Estado brasileiro. Isso, no entanto, não impediu o governo Lula de adotar uma série de medidas -na área externa, na reconstrução do sistema interno de financiamento público, na formulação de uma política industrial voltada para setores de alta tecnologia, na reformulação do sistema tributário, para citar só alguns exemplos- que se encaixam no processo de transição em direção a um novo padrão de inserção internacional e de desenvolvimento econômico e social, que tem muito pouco a ver com o modelo adotado pelo governo anterior.
O grande desafio do momento é deslanchar os investimentos nas áreas de infra-estrutura e logística e os projetos de ampliação e diversificação da capacidade produtiva que darão sustentabilidade, a médio e longo prazos, ao processo de crescimento econômico. Avançar nessa direção supõe, entre outras coisas, o desenho de uma arquitetura institucional que delimite as funções e responsabilidades dos setores público e privado, de maneira a coordenar os investimentos em ambas as esferas, distribuir eqüitativamente os riscos envolvidos, assegurar a estabilidade das normas acordadas e tornar mais eficiente a ação estatal de regulação e apoio.
O atraso na votação de iniciativas importantes para tal finalidade, como o projeto das PPPs (Parcerias Público-Privadas), é extremamente prejudicial para o país. Cabe, então, ao governo e à oposição buscar, no Congresso, convergências nessa e em outras matérias, que ajudem o país a superar as restrições existentes ao seu desenvolvimento e viabilizem as mudanças que a sociedade reclama.


Aloizio Mercadante, 50, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo e líder do governo no Senado Federal.

Internet: www.mercadante.com.br
E-mail -
mercadante@mercadante.com.br


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