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LUÍS NASSIF
O piano de Ariel Ramírez
Nas últimas semanas,
tenho mergulhado na
música regional argentina,
aquela que se desenvolveu na
região de Santa Fé, Tucumán,
Uruguai e entrou no Brasil por
Mato Grosso e pelo Rio Grande.
A cada descoberta, mais me
surpreendo com a riqueza, a
sofisticação, a qualidade das
letras e dos músicos, dos intelectuais que aderiram ao movimento e dos instrumentistas.
Foram os primeiros a trazer o
conceito de nacionalismo musical e de protesto político ao
continente. Mas com a sofisticação dos grandes eruditos.
Já escrevi sobre o cantor,
compositor e violonista
Eduardo Falú, sobre o jornalista, historiador e compositor
Félix Luna. De passagem, pelo
pianista Ariel Ramírez. É sobre ele que quero falar hoje.
É inacreditável a desproporção entre o talento de Ramírez
e o desconhecimento da sua
obra no Brasil. É o maior pianista popular que já ouvi por
essas bandas. Outro dia estava
para escrever sobre os pianistas brasileiros, Nonô, Valdemar Henrique, Moacir Peixoto, Dick Farney, César Camargo Mariano, Luiz Eça, Laércio
de Freitas, os irmãos Godoy,
Antonio Adolfo, Wagner Tiso,
Laércio de Freitas, o jovem
André Mehmari, tantos e com
qualidade.
Mas, depois de ouvir Ramírez, meu queixo caiu. Imagine
um pianista com a sutileza e o
requinte de um solo e de um
contraponto de Jacob do Bandolim, o vigor e a criatividade
de um acompanhamento de
Raphael Rabello, com a capacidade apenas dos grandes
pianistas clássicos, de subir e
ralentar a pulsação.
Não sei se existe uma escola
de piano popular brasileira,
apesar dos grandes pianistas
que possuímos. O piano de Ramírez é uma escola, um estilo
dos mais marcantes que já ouvi. Seus contracantos acompanhando Eduardo Falú, a maneira como assimilou e redefiniu a linguagem do violão
criollo no piano, os arabescos,
as pequenas citações, depois, o
som orquestral, tudo isso gerou um estilo inacreditavelmente talentoso, ao mesmo
tempo lírico e vigoroso.
Não apenas isso. Sua "Missa
Criolla" é uma peça monumental, composta em meados
dos anos 60, no rastro da reforma litúrgica do Vaticano.
Por aqui, os altares ficaram
inundados de jovens esforçados cantando Geraldo Vandré. A missa de Ariel é de outra dimensão. É uma peça erudita incorporando todos os
motivos populares do Mercosul. Nem Tom Jobim, do alto
de sua justa reputação de
maior músico popular das
Américas, em sua fase pré-bossa nova, com suas sinfonias
com Billy Blanco, nem o imenso Piazzolla conseguiram produzir algo tão sofisticado,
uma síntese tão acabada da
música erudita com temas nacionais.
Ramírez nasceu em Santa
Fé, em 1921. "Missa Criolla"
foi gravada em 1964, com um
conjunto ótimo, chamado de
"Los Fronterizos" e o "Coro de
la Cantoria de La Basílica del
Socorro". Explodiu mundialmente em pouco tempo, assim
como Ramírez, que deu início
a uma carreira internacional
de concertista. No exterior,
suas composições foram gravadas por Plácido Domingo e
José Carreras, por Benny
Goodman e a Filarmônica de
Munique.
Depois, com Luna compôs a
"Cantata Sudamericana" e
"Alfonsina y o Mar", uma das
mais belas músicas do século,
homenagem à poeta Alfonsina
Storni. Apaixonada pelo também poeta Horácio Quiroga,
ela se matou jogando-se ao
mar, depois de identificada
uma doença grave e depois do
suicídio do próprio amante.
Não sei por que Ariel Ramírez não aconteceu aqui. Talvez sua música não tenha conseguido a universalidade contemporânea de Piazzolla. Talvez o próprio fato de fazer
uma música de protesto, em
um período dominado pela
censura.
De qualquer modo, esse mergulho na música argentina
tem me produzido enorme
nostalgia. De um lado, pela
profunda beleza e musicalidade dos vizinhos. De outro, em
tentar imaginar como um país
com cultura tão rica, tão lírica
pode ter sido destruído assim
por uma elite predadora e sem
raízes.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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