São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

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LUÍS NASSIF

O piano de Ariel Ramírez

Nas últimas semanas, tenho mergulhado na música regional argentina, aquela que se desenvolveu na região de Santa Fé, Tucumán, Uruguai e entrou no Brasil por Mato Grosso e pelo Rio Grande.
A cada descoberta, mais me surpreendo com a riqueza, a sofisticação, a qualidade das letras e dos músicos, dos intelectuais que aderiram ao movimento e dos instrumentistas. Foram os primeiros a trazer o conceito de nacionalismo musical e de protesto político ao continente. Mas com a sofisticação dos grandes eruditos.
Já escrevi sobre o cantor, compositor e violonista Eduardo Falú, sobre o jornalista, historiador e compositor Félix Luna. De passagem, pelo pianista Ariel Ramírez. É sobre ele que quero falar hoje.
É inacreditável a desproporção entre o talento de Ramírez e o desconhecimento da sua obra no Brasil. É o maior pianista popular que já ouvi por essas bandas. Outro dia estava para escrever sobre os pianistas brasileiros, Nonô, Valdemar Henrique, Moacir Peixoto, Dick Farney, César Camargo Mariano, Luiz Eça, Laércio de Freitas, os irmãos Godoy, Antonio Adolfo, Wagner Tiso, Laércio de Freitas, o jovem André Mehmari, tantos e com qualidade.
Mas, depois de ouvir Ramírez, meu queixo caiu. Imagine um pianista com a sutileza e o requinte de um solo e de um contraponto de Jacob do Bandolim, o vigor e a criatividade de um acompanhamento de Raphael Rabello, com a capacidade apenas dos grandes pianistas clássicos, de subir e ralentar a pulsação.
Não sei se existe uma escola de piano popular brasileira, apesar dos grandes pianistas que possuímos. O piano de Ramírez é uma escola, um estilo dos mais marcantes que já ouvi. Seus contracantos acompanhando Eduardo Falú, a maneira como assimilou e redefiniu a linguagem do violão criollo no piano, os arabescos, as pequenas citações, depois, o som orquestral, tudo isso gerou um estilo inacreditavelmente talentoso, ao mesmo tempo lírico e vigoroso.
Não apenas isso. Sua "Missa Criolla" é uma peça monumental, composta em meados dos anos 60, no rastro da reforma litúrgica do Vaticano.
Por aqui, os altares ficaram inundados de jovens esforçados cantando Geraldo Vandré. A missa de Ariel é de outra dimensão. É uma peça erudita incorporando todos os motivos populares do Mercosul. Nem Tom Jobim, do alto de sua justa reputação de maior músico popular das Américas, em sua fase pré-bossa nova, com suas sinfonias com Billy Blanco, nem o imenso Piazzolla conseguiram produzir algo tão sofisticado, uma síntese tão acabada da música erudita com temas nacionais.
Ramírez nasceu em Santa Fé, em 1921. "Missa Criolla" foi gravada em 1964, com um conjunto ótimo, chamado de "Los Fronterizos" e o "Coro de la Cantoria de La Basílica del Socorro". Explodiu mundialmente em pouco tempo, assim como Ramírez, que deu início a uma carreira internacional de concertista. No exterior, suas composições foram gravadas por Plácido Domingo e José Carreras, por Benny Goodman e a Filarmônica de Munique.
Depois, com Luna compôs a "Cantata Sudamericana" e "Alfonsina y o Mar", uma das mais belas músicas do século, homenagem à poeta Alfonsina Storni. Apaixonada pelo também poeta Horácio Quiroga, ela se matou jogando-se ao mar, depois de identificada uma doença grave e depois do suicídio do próprio amante.
Não sei por que Ariel Ramírez não aconteceu aqui. Talvez sua música não tenha conseguido a universalidade contemporânea de Piazzolla. Talvez o próprio fato de fazer uma música de protesto, em um período dominado pela censura.
De qualquer modo, esse mergulho na música argentina tem me produzido enorme nostalgia. De um lado, pela profunda beleza e musicalidade dos vizinhos. De outro, em tentar imaginar como um país com cultura tão rica, tão lírica pode ter sido destruído assim por uma elite predadora e sem raízes.

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