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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A revolução dos idiotas

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A idiotia dos economistas vem se espalhando pelo mundo, quer se trate de operadores financeiros, quer de "cabeças de planilha", quer de replicantes de professores medíocres das escolas americanas. Nos últimos 20 anos, ocuparam espaços e posições crescentes nas inúmeras redes de poder global (mercados, burocracias e mídia) o que lhes dá bases de sustentação e de cooptação material e ideológica sem precedentes. Percebendo-se a si mesmos como maioria, deram lugar à "revolução dos idiotas" a que Nelson Rodrigues se referia numa de suas crônicas (desculpe, Paulo Nogueira, o uso de sua referência predileta).
No Brasil, as discussões de políticas públicas (copiadas de velhos e novos relatórios do FMI e do Banco Mundial) viraram slogans: "Combater a pobreza sem comprometer o ajuste fiscal"! "Gasta-se muito e mal no social"! Os nossos economistas de plantão agregam à submissão financeira a submissão cultural. Neste ano, com o crescimento tendendo a zero e a inflação caindo rapidamente, a nossa Secretaria do Tesouro produziu um superávit fiscal primário superior à meta acordada com o FMI. Os mais realistas que o rei acham que isso aumenta a nossa credibilidade no exterior! Para negociar um acordo melhor com o Fundo? Não há evidências.
A idiotia dos acadêmicos anglo-saxões não é menor. Em plena recessão mundial, os neokeynesianos bastardos recomendaram uma diminuição dos déficits fiscal e do balanço de transações correntes e um aumento da "poupança interna" dos EUA. Poucos se deram conta de que os superávits comerciais dos países asiáticos têm uma relação complementar com os déficits americanos e foram acompanhados de uma enorme acumulação de reservas em dólar, sobretudo no Japão, na China e nas maiores praças financeiras abertas. Evidentemente, o Federal Reserve e o Tesouro não seguem seus acadêmicos. Sabem que a dívida pública americana pode se expandir aceleradamente com qualquer resultado das contas fiscais e do rendimento dos títulos do Tesouro americano, enquanto o dólar for a moeda dominante nos mercados financeiros globais.
No Brasil, como em outros países periféricos devedores, a situação é evidentemente oposta e não podemos imitar os países credores da Ásia nem o maior devedor mundial, os EUA. Assim, a nossa restrição de balanço de pagamentos continua, ao contrário do que julgavam os "gênios" do Plano Real. Políticas cambiais irrealistas não ajudam a manter saldos de transações correntes sustentáveis. Uma taxa de câmbio apreciada é, em geral, provocada pela manutenção de juros altos muito superiores aos exigidos no mercado internacional nos ciclos de expansão de liquidez internacional. Significa menor capacidade de sustentar o saldo comercial, mas estimula a entrada de capitais especulativos. A situação reverte-se com qualquer aperto de liquidez ou aumento do risco global dos mercados financeiros mundiais e provoca uma nova crise de balanço de pagamentos, tornando-nos periodicamente prisioneiros de acordos com o FMI.
Os apologistas do câmbio livre continuam achando que a taxa de câmbio flutuante encontrará o seu "ponto de equilíbrio". Não se perguntam, é claro, equilíbrio para qual das contas: a de transações correntes ou a de capitais recheadas de passivos de curto prazo? O excelente resultado do saldo comercial de 2003 sobe-lhes à cabeça, esquecidos de que se deve em parte à própria recessão industrial interna, à melhoria dos preços das nossas commodities de exportação e à conquista de novos mercados, esta apoiada pela desvalorização do dólar em relação ao euro. Não se trata, portanto, de uma trajetória estável em que o câmbio flutuante e os mercados financeiros "livres" resolvam as contradições da nossa restrição externa ao crescimento sustentado.
Outra marca registrada dos nossos economistas-financistas tem sido atacar as instituições públicas de crédito e fomento (o BNDES à frente), depois de tentar privatizá-los. Afirmam que falta no Brasil um "mercado de capitais" para crescer mais rápido. No entanto nem a economia americana que possui o mais amplo e profundo mercado de capitais do mundo foi alimentada por ele de forma sustentada, já que as bolhas especulativas interromperam dois ciclos de crescimento. Imagine-se o nosso mercado raso (povoado de piranhas), financiando o investimento industrial e em infra-estrutura!
A discussão sobre a duração de nosso ciclo de consumo comparando-o com o americano (os chamados vôos da águia e da galinha) também está fora de lugar porque os dados relevantes não são levados em conta. Os níveis de renda de 80% da população americana estão acima de um salário mínimo de US$ 1.000 mensais, enquanto os nossos 20% mais ricos partem de um patamar de R$ 600. Os volumes de crédito em relação ao PIB, a capacidade de endividamento e as taxas de juros baixíssimas e muitas vezes negativas para repactuar os contratos de dívida das famílias americanas não são comparáveis com os volumes de crédito e os "spreads" bancários brasileiros. Finalmente, esquecem o aumento considerável dos gastos com transferências sociais (sobretudo saúde e previdência) nos períodos recessivos das últimas duas décadas, ao contrário do que aqui se pratica e proclama como "boa política social".
Alguns economistas críticos, que escaparam do massacre ideológico e das benesses mercantis da década de 90, parecem a ponto de soçobrar na desesperança ou no voluntarismo que decorre da raiva. É preciso limpar as cabeças e parar de ouvir o ruído insuportável da cacofonia veiculada pela mídia. Não para se resignar e "beijar a cruz", e sim, como sempre, para tentar enfrentar a realidade e continuar a luta.


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
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E-mail -
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