São Paulo, quarta-feira, 08 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Do discurso à prática

PAULO RABELLO DE CASTRO

O discurso de posse de um presidente é, por antecipação, sua carta-testamento. Diz das suas intenções maiores, ainda que não as consiga cumprir depois.
O discurso do presidente Lula não fugiu à regra. Mas com uma peculiaridade: falou mais alto pelo que não disse. Não pregou, por exemplo, a dicotomia "rico versus pobre" tão cara à verbalização do Partido dos Trabalhadores por anos a fio. Pelo contrário, ressaltou o mal da carga tributária excessiva, quando poderia ter usado a mesma frase para cobrar a taxação ainda mais forte sobre "os ricos".
Tampouco disse que a "comida é para os brasileiros", na cadência convencional e antagonista às exportações, como se essas fossem o esbulho do chamado "mercado interno". Pelo contrário. Nenhuma tese no discurso de Lula foi mais afirmativa que a atenção às exportações, primeiro para diminuir a reconhecida vulnerabilidade financeira externa e, em seguida, por reconhecer que esse esforço exportador é sumamente gerador de renda e empregos, prioridade "obsessiva" do novo governo.
Não quis Lula, assim também, rever as "perdas internacionais" ou os contratos de empréstimos externos "ruinosos", ou as "alianças espúrias" com o capitalismo globalizado. Nem muito menos no plano interno pretendeu defender as "conquistas sociais" contidas na vigente legislação do trabalho e nos atuais regimes de previdência. Para espanto de um imaginário viajante que retornasse ao país depois de longo período de afastamento, aqui teria encontrado um presidente de esquerda defendendo, com argumentos criteriosos, a completa revisão da antiquada CLT e a reforma profunda dos regimes previdenciários injustos.
Portanto Lula fez um discurso de peso e significado históricos -não só pelo passado, que denunciou, como também pelo presente e pelo futuro, agora projetados conforme um ideário de continuidade nas mudanças encetadas na era FHC, por mais que aos novos governantes abomine a perspectiva de apenas sequenciar o período conhecido como "neoliberal".
Pois é. O que ficou registrado no discurso de posse é o ideário de um governo criterioso e corajoso, mais interessado em acertar de verdade do que em reafirmar sua coerência com as próprias incoerências do seu pensamento oposicionista.
No governo, Lula não pretende ser oposição, mas, sim, administrar. É a atitude correta, a única compatível com os desafios à frente do PT e de seus aliados.
Conseguimos destacar no discurso presidencial, já pelo que disse, cinco pontos capitais ao ideário do novo governo:
1) distribuição pela boca (fim da fome)
2) reforma agrária produtiva
3) revolução pelo capital humano
4) modelo de crescimento baseado em poupança interna
5) reformismo das "leis sociais".
Tais ênfases de políticas públicas teriam sido totalmente aprovadas pelo saudoso professor T.W. Schultz, da Universidade de Chicago, e grande mentor, naquela escola, das teses sobre o capital humano, a economia da família e o desenvolvimento pela educação. Aliás, foram essas, precisamente, as teses defendidas pelo professor Schultz numa série de conferências que proferiu no Brasil em 1981, quando para cá o trouxemos, pouco tempo após haver recebido o Prêmio Nobel de Economia por suas contribuições notáveis ao entendimento da "economia da pobreza". Schultz, como Lula, fazia questão de pisar no barro, pois considerava essencial visitar os lugares, conversar com as pessoas, entender profundamente o objeto de suas preocupações e pesquisas. Qualquer semelhança com a programada visita de Lula a Guaribas (PI) nesta semana não seria mera coincidência.
Mas a cura da doença não é produzida apenas pela visita cordial do médico. É essencial o diagnóstico e imperativa a correta terapêutica. É preciso passar do discurso à prática. E isso exige técnicas adequadas para que resultados palpáveis sejam obtidos no campo social. A pobreza é como uma areia movediça. Não dá para entrar nela na tentativa de resgatar quem caiu lá dentro. É preciso puxar com corda, ou pau, a partir de um ponto de apoio firme. E esse ponto de apoio firme simplesmente ainda não existe. A economia brasileira continuará crescendo devagar demais este ano, com altas taxas de risco percebido, altos "spreads" e indecentes taxas de juros, principalmente se a insistência for -como parece ser- a de meramente dar continuidade ao insustentável ciclo de endividamento crescente como forma de financiamento do Estado brasileiro. Sobre esse tema central -um definitivo encontro das contas do setor público, este sim o grande propagador da miséria brasileira- infelizmente o discurso presidencial calou-se. De modo que resultará bizarro ver um presidente sincero e bom tentando debelar pela boca uma fome que continuará crescendo pelo bolso.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - paulo@rcconsultores.com.br


Texto Anterior: Juro cai com mais exportação, diz Alencar
Próximo Texto: Banco público: Jorge Mattoso é confirmado na CEF
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.