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Estimular bolha é erro, diz analista
DO ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK
Incapaz de entender as lições do
recente estouro da bolha nas Bolsas, o governo dos EUA tenta criar
uma nova e perigosa euforia no
mercado de ações americano. A
opinião é de Stephen Roach, economista-chefe e diretor de análise
econômica global do banco americano Morgan Stanley.
Considerado um dos mais coerentes -e pessimistas- analistas de Wall Street, Roach diz que o
pacote de US$ 674 bilhões anunciado ontem pelo presidente
George W. Bush erra ao focar seus
incentivos na eliminação de impostos sobre dividendos distribuídos por empresas a investidores. "Washington tem memória
curta", disse ele em entrevista à
Folha na sede do banco. "Esqueceu que chegamos a essa difícil situação justamente por exageros
no mercado de ações."
Segundo Roach, o pacote de
Bush não vai estimular a produção porque as indústrias ainda
não se livraram do superinvestimento que fizeram nos últimos
anos. O economista diz ainda que,
em vez de consumir, os americanos deverão usar o novo alívio fiscal para pagar dívidas e poupar, à
espera de um desfecho da crise no
Iraque.
(MARCIO AITH)
Folha - O pacote econômico
anunciado ontem pelo presidente
Bush será capaz de estimular a economia real dos EUA ou apenas inflar o mercado de ações?
Stephen Roach - Existe hoje um
esforço global de combate à deflação que ameaça as economias dos
países desenvolvidos. Esse esforço envolve estímulos fiscais e monetários [aumento de gastos públicos e corte de impostos e juros"
nos EUA, no Japão e, cada vez
mais, na Europa. Não duvido das
boas intenções envolvidas nessa
iniciativa. O problema é que, nos
EUA, esse estímulo está focado
exageradamente no mercado de
ações, guiando não só a política
monetária do país -o Fed (banco central dos EUA) parece preocupar-se apenas em valorizar as
Bolsas- como também a política
econômica de Bush. É absurdo
que o principal ponto do pacote
seja a eliminação de impostos sobre dividendos de investidores. O
correto seria reduzir a carga tributária das empresas. Washington
tem memória curta. Esqueceu
que chegamos a essa difícil situação justamente por exageros no
mercado de ações. Estamos vivendo as consequências do estouro da mais devastadora bolha de
ativos da história moderna. Curiosamente, nossas autoridades
fiscal e monetária nada aprenderam com essa trágica experiência.
Folha - Quais são suas evidências
de que o pacote irá falhar no objetivo de incrementar o consumo e estimular investimentos?
Roach - As três atividades que tipicamente respondem a estímulos como os desse pacote -consumo de bens duráveis, construção de casas e gastos de capital-
envolvem setores que superinvestiram nos últimos anos. É ilógico
esperar que os americanos comprem novos carros porque o governo cortou os impostos sobre
seus dividendos. Eles já compraram carros, muitos carros.
Folha - Qual foi o impacto da primeira fase do corte de US$ 1,35 trilhão em impostos, implementada
pelo presidente Bush em 2001?
Roach - Os americanos usaram
uma parte do dinheiro extra para
pagar as dívidas gigantescas que
acumularam voluptuosamente
na última década. Pouparam a
outra parte, elevando a taxa de
poupança pessoal de 0,5% para
4% -um patamar ainda incrivelmente baixo para nossos padrões
históricos. As pessoas não estão
consumindo, mas poupando e
pagando suas dívidas.
Folha- Não é positivo o fato de os
americanos estarem poupando
mais e pagando suas dívidas?
Roach - Se o que estamos fazendo é transferir a poupança do governo para a poupança dos cidadãos, a taxa nacional de poupança
(a soma das poupanças das pessoas, empresas e governos) permanece a mesma. O que temos de
fazer é elevar a taxa nacional de
poupança, não transferir dinheiro
de um agente para outro. Nossa
taxa nacional de poupança líquida é 2% do PIB, a menor da história americana. Nos anos 90, era de
6%. Nos anos 60 e 70, era de 11%.
Folha - Durante o boom do mercado de ações, dizia-se que o conceito de poupança pessoal estava
ultrapassado. Até funcionários do
FMI (Fundo Monetário Internacional) admitiam que os EUA haviam
atingido uma forma inovadora de
poupança, via Bolsas.
Roach - Isso é uma besteira enorme. A bolha levou indivíduos a
acreditar que haviam descoberto
a chave de uma forma eterna de
poupança. Corporações pensaram ter encontrado uma nova
forma de se reapresentar aos mercados, na forma eletrônica, multiplicando os canais de obtenção de
capital. O problema da bolha é
que ela afetou a economia real,
criando excessos em todos os aspectos da atividade econômica. Se
tivesse se limitado ao preço de
ações, teria sido só trágico.
Folha - No entanto, o consumo
parece não ter sido afetado pelo estouro da bolha.
Roach - Discordo. Os consumidores americanos que continuam
comprando estão se deleitando
com uma nova bolha: a bolha
imobiliária. Estão refinanciando
suas próprias casas, extraindo novos empréstimos e lastreando-os
com imóveis ainda supervalorizados. Eu me preocupo, mas o presidente do Fed [Alan Greenspan"
diz que está tudo bem.
Folha- O que está ocorrendo com
a economia real americana?
Roach - Os EUA estão se recuperando de forma muito lenta e frágil. Trata-se de uma recuperação
suscetível a recuos periódicos. Para os EUA, crescimentos de 1% ou
2% significam estagnação. E economias paradas perdem a imunidade para se protegerem de choques externos cíclicos, como o
choque de oferta representado
hoje pelo aumento do preço de
petróleo. O risco de uma recaída
recessiva é bastante real. Tivemos
o pior Natal em 30 anos.
Folha - O sr. tem dito que o crescimento do déficit em conta corrente
dos EUA é insustentável. Por quê?
Roach - Nunca houve na história
exemplo de um país cujo déficit
externo cresceu indefinidamente.
É ainda mais improvável que isso
venha a ocorrer com o país mais
industrializado do mundo, cuja
moeda é a forma principal de reserva de valor. Os EUA têm
US$ 500 bilhões de déficit em conta corrente. O mundo nunca teve
que financiar um desequilíbrio
como esse. A disparidade entre os
países com déficits de 5% do PIB,
como o dos EUA, e países com superávits, na Ásia e Europa, nunca
foi tão ampla desde a 2ª Guerra.
Uma convergência entre os resultados em conta corrente dessas
economias é só uma questão de
tempo. E vai ocorrer ao custo da
reavaliação do valor do dólar.
Folha- O que ocorrerá com a demanda global se os EUA corrigirem
seu déficit em conta corrente desvalorizando ainda mais o dólar?
Roach - Se o dólar cair como parte de um ajuste em conta corrente
nos EUA, e as chances são grandes de isso ocorrer, isso significaria um euro e um iene mais fortes.
Isso forçaria a Europa e o Japão a
abandonarem suas inércias e estimularem suas economias domésticas. O mundo está exageradamente dependente dos EUA e das
exportações. Isso não pode ocorrer em nenhum país. O Brasil, como o resto do mundo, deveria
preocupar-se em estimular um
consumo doméstico vigoroso.
Folha - O sr. deveria dizer isso ao
FMI... O Brasil, no momento, precisa restabelecer as linhas de crédito
cortadas por bancos americanos
em 2002. O sr. acha que o sistema
financeiro americano está em condições de estender novas linhas?
Roach - Os bancos americanos
estão hoje em melhor situação
que na crise do final da década de
80. Mas herdaram o custo dos escândalos corporativos americanos do ano passado e sofrem o risco de calote nos créditos a consumidores e famílias -a dívida pessoal chegou a recordes históricos
nos EUA. Então, diria que não haverá colapso, mas que o sistema
financeiro ainda precisa de um
tempo para se recuperar. Na verdade, o mundo está numa situação difícil. As pressões deflacionárias que começaram na Ásia se espalharam para os EUA e para a
Europa. A resposta clássica para
lidar com o risco de deflação são
políticas "reflacionárias" para elevar a demanda. Estão sendo tocadas nos EUA e no Japão. A dúvida
é saber se funcionarão.
Folha- Qual será o impacto de
uma guerra contra o Iraque sobre a
economia mundial?
Roach - Temos que fazer cenários. O primeiro cenário é o de
uma "guerra limpa", que leve semanas e conduza a uma ocupação
militar bem-recebida pelos iraquianos. Esse cenário seria muito
bem-recebido pelos mercados. A
redução no preço de petróleo decorrente disso corresponderia a
um novo corte de impostos nos
EUA. O segundo cenário seria
uma "guerra suja", com complicações durante o conflito ou a
ocupação. Nesse caso, o preço do
petróleo se manteria elevado por
um período maior. Mas o pior cenário é o de uma "não-guerra",
com a crise estendendo-se indefinidamente sem um conflito. Isso
manteria as incertezas no ar e
congelaria os investimentos e o
consumo.
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