São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Demografia é destino

RUBENS RICUPERO

Se, em 1704, alguém pretendesse calcular cientificamente qual seria a população do mundo (e do Brasil) em 2000, o exercício seria classificado de insensatez, futilidade ou ficção científica, caso existisse a expressão. Pois é isso o que está fazendo, pela primeira vez, a Divisão de População da ONU, ao projetar a provável população de todos os países e regiões até 2300!
Imagine o leitor o que era o Brasil (ou os brasis, conforme se dizia às vezes) três séculos atrás. Começava-se a descobrir ouro em Minas, que continuaria parte da Capitania de São Paulo até 1720. Seria preciso esperar até 1763 para que a capital fosse transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, que, em 1710, pouco antes dos ataques dos corsários Du Clerc e Duguay-Trouin, tinha só uns 12 mil habitantes. O Barão do Rio Branco, sempre cuidadoso nos números, estimava em 3.200.000 a população brasileira em 1800. Quase 20 anos depois, na véspera da Independência (1817-18), o país teria 3.758.400 habitantes, dos quais 1.930.000 escravos e 526.500 mestiços ou negros livres. Em 1900, éramos 17.438.434, provavelmente subestimados. Um século mais tarde, 169.590.693, quase dez vezes mais.
À luz da vertiginosa expansão do século 20, as cifras de 1700 ou 1800 dão a impressão de pertencer a um país que nada mais tem de comum com o atual, a não ser uma continuidade teórica, mais imaginária que real. Por que seria então diferente a sorte das estimativas que fazemos para daqui a 100, 200, 300 anos? É certo que o instrumental demográfico é muito mais preciso e científico. Ele pressupõe, contudo, evoluções em outros domínios, que podem ou não se confirmar na realidade. Por exemplo, ao calcular que, em 2050, a África terá mais que dobrado de tamanho, passando de 851 milhões a 1,8 bilhão, 20,2% do planeta, a ONU espera que, até aquela data, a Aids esteja sob controle.
A presunção soa razoável, mas quem garante? Duas ou três décadas atrás, ninguém imaginaria que, nesta era de proezas científicas, tivéssemos de assistir inermes a uma peste de dimensões quase medievais, que, nos 38 países africanos mais afetados, ceifou 8 milhões de vidas entre 1995 e 2000 e nos cinco anos transcorridos desde então e até 2005 deve aniquilar mais 15 milhões. Como assegurar que não haverá novas epidemias catastróficas como essa, desastres climáticos apocalípticos ou guerras atômicas, no curso dos próximos 300 anos?
Tal é o problema principal das projeções a prazos muito longos: é impossível antever as grandes rupturas para o mal ou para o bem, catástrofes planetárias ou revoluções tecnológicas. Conscientes dessas dificuldades, os demógrafos da ONU sabem que estão, no máximo, propondo alguns poucos cenários probabilísticos e hipotéticos entre os inúmeros possíveis, com duas características inovadoras:
1ª) estendem o horizonte de tempo até 2300, quando antes as previsões só alcançavam 2150;
2ª) incluem estimativas por países, em lugar de somente por continentes, como anteriormente. O cálculo mediano parte da hipótese de que a taxa de fecundidade (o número de filhos por mulher) se estabilizará por volta de 2. Nesse caso, embora a taxa esteja pouco abaixo do nível de reposição (2,1), a população continuaria a crescer lentamente devido aos ganhos de longevidade. No cenário mediano, a população mundial aumentaria dos atuais 6,3 bilhões até cerca de 9 bilhões em 2300.
Mesmo pequenas variações da fecundidade para baixo ou para cima terão impacto colossal a longo prazo. Se essa taxa for de 1,85 criança, a população encolherá para 2,3 bilhões; se a taxa se estabilizar em 2,35, a Terra explodirá, com 36,4 bilhões de habitantes em 2300! Com os níveis de fecundidade de hoje, chega-se à inconcebível cifra de 244 bilhões em 2150 e 134 trilhões em 2300, o que mostra a impossibilidade de manter o ritmo presente.
Dentro de três séculos, os três gigantes seriam os mesmo de agora, só que em ordem ligeiramente modificada: a Índia, em primeiro lugar, com 1,372 bilhão; a China, em segundo, com 1,285 bilhão; e os EUA, com 493 milhões. A América Latina e o Caribe declinariam de 768 milhões em 2050 (8,6%) para 723 milhões em 2300 (8,1%).
Nesse cenário mediano, o Brasil figuraria em oitavo lugar. Estaria escalado para diminuir de 233 milhões (2050) a 208 milhões (2200) e voltar a subir a 223 milhões (2300), atingindo-se o ponto máximo da população em 2055, com 233.364.000 habitantes.
Com ligeiro atraso, as tendências demográficas brasileiras acompanham as que se completaram, há algumas décadas, nas sociedades ricas: queda drástica da fecundidade e redução da mortalidade. De acordo com a incisiva síntese de Elza Berquó: "No decorrer do século 20, as mulheres no Brasil reduziram a sua prole, em média, em 5,5 filhos, enquanto houve um ganho de 35 anos na expectativa de vida dos brasileiros". O mesmo está sucedendo com o envelhecimento da população. Segundo Berquó, por volta de 2040, os idosos (65 anos e mais) superarão os jovens (até 15 anos), o que já aconteceu ou está por acontecer nas nações avançadas.
As implicações para o futuro do Brasil dessas transformações demográficas serão decisivas e nem sempre fáceis de avaliar. Tem havido já alguma atenção para essas conseqüências no caso da sustentabilidade da Previdência Social, mas o que dizer sobre outros aspectos de importância igual ou maior?
Só para lembrar alguns deles, qual será o provável impacto no ambiente, na preservação da Amazônia, benigno pela redução da pressão populacional dos migrantes pobres ou maligno pela devastação do agronegócio ávido de terras para aumentar a agricultura de exportação? Haverá novas mudanças inesperadas na mobilidade da população, nas migrações campo-cidade ou norte-sul? O que poderá ocorrer com o mercado de trabalho, diante de menos jovens, mas número maior de idosos querendo conservar o emprego?
Será, como esperam os otimistas, que a demografia fará, em favor de uma mais eqüitativa distribuição de renda, o que nunca quiseram fazer os dirigentes? E a pressão sobre a terra e pela reforma agrária, tenderá a dissolver-se no ar, conforme pedem em sonhos os grandes proprietários? Seria acaso absurdo temer que a queda da fecundidade se torne mais dramática que na Itália ou Espanha, quando se levam em conta as semelhanças culturais de comportamento, o recurso veloz e maciço a alguns dos métodos mais radicais como a esterilização voluntária e condições de oferta de habitações, creches, facilidades sociais incomparavelmente mais graves que nos países mediterrâneos?
É hora de começar a dar atenção maior ao que se passa com a população brasileira, pois, se todo o resto pode, em grau maior ou menor, ser remediado com medidas de curto prazo, a demografia tende, ao contrário, a se transformar em destino.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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