São Paulo, sexta-feira, 08 de março de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Diário de Buenos Aires

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

T enho acompanhado quase diariamente a situação da Argentina por meio de seus principais jornais. Pela manhã, durante os últimos 18 meses, tenho lido na internet as notícias sobre os acontecimentos dramáticos que atingiram em cheio essa sociedade. Considero-me um analista bem informado e, com um pouco de presunção, um bom entendedor do que está se passando na terra do tango. Mas confesso aos leitores da Folha que foi com uma curiosidade infantil que desembarquei no aeroporto de Ezeiza neste último domingo. A oportunidade de viver o dia-a-dia de uma crise gravíssima provocava em mim uma angústia estranha.
Foi com esse sentimento que atravessei a alfândega e cheguei ao salão principal do terminal internacional de Ezeiza. Tive então minha primeira experiência com a realidade que, por tantos meses, acompanhei no mundo virtual da internet. Meu treinamento profissional permitiu captar a primeira informação relevante sobre a situação econômica desse patinho feio da economia mundial dos dias de hoje: o preço do táxi para o centro da cidade em pesos -agora solitário do companheiro de mais de uma década que foi o dólar americano- estava mais baixo do que anteriormente. Em outras palavras, mesmo depois de uma desvalorização de mais de 100%, os taxistas estavam cobrando menos do que antes. Sinal claro de que reconheciam a perda de renda brutal de seus clientes nacionais. Por outro lado os preços do cafezinho e da "mezza luna" no bar do aeroporto já estavam normais, muito abaixo do que havia encontrado em minha última viagem, em 1995. Para o economista que está dentro de mim, um sinal claro da desindexação forçada em relação à moeda americana e um sinal de que o fantasma da hiperinflação estava longe de aparecer. Uma segunda surpresa me aguardava no trajeto entre o aeroporto e o hotel Alvear, no lindíssimo bairro de Recoleta. Nenhum sinal de conflito nas ruas e nenhuma fila de argentinos ululantes nas portas dos bancos tentando desesperadamente trocar seus pesos por dólares. Além disso, a cidade continuava belíssima, com suas amplas avenidas e seus jardins por toda parte.
Na manhã seguinte comecei meu roteiro de visitas a economistas, banqueiros, advogados e outras lideranças empresariais. Minha primeira impressão de normalidade evaporou-se. Encontrei em todos um desânimo, mais do que revolta, com o passado e o futuro. Olhavam para mim e a meus companheiros de viagem com estupefação quando discorríamos sobre nosso projeto de um fundo de investimentos em alguns dos setores mais modernos da economia de seu país. Como seria possível falar com um certo otimismo sobre o futuro quando todos não conseguiam enxergar um futuro? Como podíamos pensar em vir a esse país quando todos os estrangeiros só pensavam em ir embora, correndo, para nunca mais voltar?
Passado esse primeiro momento de surpresa, abriam seus corações e falavam sobre o que tinha acontecido e sobre os problemas mais graves que, na sua opinião, estão presentes hoje.
Ficou logo claro, para nós, que podíamos dividir nossos interlocutores em dois grupos distintos.
No primeiro estavam aqueles que haviam participado, com corpo e alma, do delírio liberal que tomou conta do país nos últimos anos. Para eles, não havia futuro e a Argentina deve caminhar para uma anarquia ainda maior. Os políticos no poder são irresponsáveis, incapazes e corruptos. Enxergam uma crise social sem precedentes nos próximos meses. Um de nossos interlocutores falou de um conselho dado pela embaixada de um grande país europeu para que seus cidadãos deixem imediatamente o país. O governo Duhalde vai entrar em colapso, novas eleições serão convocadas e uma deputada populista de esquerda será eleita presidente. Percebi claramente que, talvez oprimidos pela culpa de terem participado de uma experiência irresponsável, falavam mais com o fígado do que com a razão.
Em um segundo grupo, formado por aqueles que foram críticos dos anos Menem e conseguiram entender os erros cometidos, podíamos encontrar alguma esperança. Apesar de reconhecerem nos líderes políticos um total despreparo para enfrentar os desafios de hoje, acreditam que a percepção de que eles serão os próximos a serem arrastados pela rua e a força de alguns setores da economia que se modernizaram nos últimos anos abrem algum espaço para estabilizar a economia e devolver algum crescimento ao país.
Desse grupo conseguimos tirar uma avaliação mais fria da situação e alguns dados mais concretos sobre o futuro. Algumas dessas informações são terríveis e assustadoras. A renda anual per capita dos argentinos deve cair de algo como US$ 8.000 para baixo dos US$ 2.000 nos próximos anos. Igual à da Bolívia! A dívida pública deve pular de 50% do PIB para mais de 100% do PIB por conta da desvalorização do peso. O país não tem mais um sistema financeiro que funcione por conta dos prejuízos dos bancos e da ruptura dos contratos da economia.
Outros trazem algum alento como a estimativa de que o saldo da balança comercial deve ficar entre US$ 12 bilhões e US$ 16 bilhões em 2002 se houver alguma estabilidade política e que a produção agrícola pode chegar a 100 milhões de toneladas nos próximos anos. Além disso, parte da indústria Argentina modernizou-se muito nos últimos anos e deve avançar com o estímulo do peso desvalorizado.
Voltamos ao Brasil revoltados com os responsáveis, no setor privado e público, pelo surto de liberalismo radical que está no centro da "débâcle" de um país outrora rico e orgulhoso. Penso que a probabilidade de uma saída ordenada da crise não é maior do que 30% hoje. Pior, não conseguimos imaginar um futuro com as lideranças políticas e empresariais que a Argentina tem hoje.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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