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OPINIÃO
"Farm bill" expõe privilégio para Estados rurais americanos
PAUL KRUGMAN
Lembram-se do quanto os representantes eleitos de Nova
York tiveram de trabalhar para
obter US$ 20 bilhões em assistência para a cidade vítima de ataques
terroristas -assistência que já havia sido prometida? Bem, recentemente o Congresso concordou em
fornecer aos agricultores norte-americanos US$ 180 bilhões em
subsídios ao longo da próxima década. E, aliás, a população apenas
da cidade de Nova York é cerca de
duas vezes maior do que a população agrícola total dos Estados Unidos.
Eu tenho sempre sido um crítico
severo do governo Bush, mas esse
é um caso em que os democratas
do Senado são os principais vilões.
Para seu crédito, a administração Bush inicialmente se opôs à
elevação dos subsídios à agricultura, ainda que, como no caso da
proteção à indústria de siderurgia
norte-americana, não tenha demorado muito para que o calculismo político derrotasse os supostos
princípios do governo. Mas, política à parte, talvez o fiasco do projeto de lei de agricultura nos ajude,
enfim, a libertar o país de um mito
nacional muito prejudicial: o de
que o "coração da terra", consistindo dos Estados centrais do país,
relativamente rurais, é moralmente superior a todo o resto dos Estados Unidos.
A história já foi ouvida muitas
vezes: os habitantes dessa região,
dizem-nos, são auto-suficientes,
afeitos às durezas da vida, comprometidos para com suas famílias, enquanto os moradores das
regiões costeiras são yuppies resmungões.
De fato, George W. Bush declarou que ele visita o seu cenário
-digo, fazenda- em Crawford
para "manter o contato com os
verdadeiros norte-americanos". E
aqueles de nós que vivemos no Estado de Nova Jersey somos o que,
fígado picado?
Mas nem os elogios dedicados
ao "coração da terra" nem as críticas às duas costas têm qualquer
base na realidade.
Eu decidi realizar algumas comparações estatísticas, usando uma
das definições populares para o
que convencionamos chamar de
"coração da terra": os chamados
"Estados vermelhos" que -em
uma eleição que opôs as duas costas ao centro do país- optaram
por Bush de preferência a Gore.
Como eles se comparam aos "Estados azuis", onde os democratas
venceram?
Certamente os "vermelhos" não
podem alegar superioridade
quando se trata de valores familiares. De fato, eles se saem pior do
que os "Estados azuis" se compararmos os indicadores de responsabilidade individual e compromisso para com a família.
Nos Estados vermelhos, a chance de que as mães sejam solteiras
ou adolescentes são mais elevadas
-em 1999, 33,7% dos bebês nos
Estados vermelhos nasceram fora
do casamento, ante 32,5% nos Estados azuis. As estatísticas nacionais de divórcio não são muito firmes, mas no geral há 60% mais divórcios, per capita, em Montana
do que em Nova Jersey.
E os Estados vermelhos têm problemas especiais com o sexto
mandamento [da religião cristã:
"não matarás"": neles, o índice de
assassinatos é de 7,4 por 100 mil
habitantes, ante 6,1 nos Estados
azuis e 4,1 em Nova Jersey.
Mas o que realmente choca é a
alegação de que o "coração da terra" é auto-suficiente. O grotesco
projeto de lei da agricultura aprovado recentemente seria prova suficiente de que essas asserções são
ridículas; mas ele serve apenas para aumentar os subsídios já imensos que os Estados vermelhos recebem do restante do país.
Como grupo, os Estados vermelhos pagam consideravelmente
menos em impostos do que o governo federal gasta dentro de suas
fronteiras; os Estados azuis pagam
consideravelmente mais. No geral,
os Estados Unidos azuis subsidiam os Estados Unidos vermelhos em cerca de US$ 90 bilhões ao
ano.
E dentro dos Estados vermelhos,
são as áreas metropolitanas que
pagam impostos, enquanto as regiões rurais recebem subsídios.
Quando estudamos os números
dos Estados vermelhos, excluídas
as cidades mais importantes,
constatamos que eles se assemelham a Montana, o qual em 1999
recebeu US$ 1,75 em verbas federais para cada dólar pago em impostos. Os números para o Estado
onde vivo, Nova Jersey, são praticamente o oposto. E, se acrescentarmos os subsídios ocultos, como
provisão de água para irrigação
abaixo do custo, uso quase gratuito de terras federais para pastagem
e assim por diante, torna-se claro
que em termos econômicos o "coração rural" dos Estados Unidos é
a nossa versão do sul da Itália:
uma região cujos habitantes são,
em geral, sustentados por assistência de seus compatriotas mais
produtivos.
Não há mistério quanto aos motivos do tratamento especial da região: ele resulta de nosso sistema
eleitoral, que dá a Estados com populações pequenas -no geral, se
não exclusivamente, Estados vermelhos- representação desproporcional no Senado e, em menor
grau, no colégio eleitoral. De fato,
metade do Senado é eleita por apenas 16% da população.
Mas, embora essas vantagens
políticas brutas sejam um fato da
vida, pelo menos podemos exigir
o fim da hipocrisia. O coração da
terra não tem nenhum direito especial de se apresentar como "os
verdadeiros Estados Unidos". E os
Estados azuis têm direito de perguntar por que, em um momento
em que o governo federal voltou
ao déficit e programas domésticos
essenciais estão sofrendo cortes,
uma pequena minoria de norte-americanos, já pesadamente subsidiados, se sente no direito de obter assistência ainda maior.
Paul Krugman, economista, é professor
na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi publicado pelo jornal norte-americano "The New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci
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