São Paulo, sexta-feira, 08 de agosto de 2008

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VINICIUS TORRES FREIRE

Um ano de socialização do prejuízo


Memória do estouro da crise ignora que mercado teve carta-branca para ser ineficiente e incentivos para criar bolhas

A IMPRENSA de língua inglesa decidiu que a crise financeira fez aniversário nesta semana, quando faz um ano que os bancos centrais dos Estados Unidos e da Europa notaram o pânico e passaram a oferecer centenas de bilhões em crédito camarada a fim de evitar sufocação por falta de liquidez no mercado interbancário, com risco de morte -quebras de bancos. Apesar das tentativas de compreender a origem da barafunda, a cobertura dá a impressão de que esses interlocutores e por vezes porta-vozes da finança mundial não quiseram ou não puderam anotar a placa do caminhão que os atropelou. As memórias da crise não poderiam deixar de notar os rinocerontes que circulam no teatro do pandemônio financeiro, dois deles em particular. Um é a enorme operação de socorro e seguro de operações e instituições financeiras podres, sem a qual o eterno clichê do espectro de uma crise como a de 1929 viria enfim a se materializar. O outro foi o colapso de um modelo de finanças que, se acreditava, tinha levado ao estado-da-arte a alocação de capital e o controle e a diluição de riscos de calote e quebras. Não eram modelo ou crença quaisquer. Alan Greenspan, o brilhante gerente da finança mundial por duas décadas, subscrevia e defendia o sistema de inovação financeira. Em suma, tratava-se de métodos cada vez mais complexos de bancos transformarem empréstimos que faziam em investimentos para terceiros, em tese ficando com riscos menores e repassando derivativos duvidosos, mas rentáveis, para investidores, o que permitiu enorme crescimento do crédito. O que é irônico e bloqueia interpretações ideológicas rudimentares do problema é que a inovação financeira auxiliou em parte o crescimento mundial. Criou outra bolha, a qual permitiu que os EUA continuassem a viver acima de seus meios, em déficits e dívidas. A rolagem do passivo ajudou a mover a economia mundial (os americanos sendo os "consumidores de última instância" do mundo, como diz a fórmula algo exagerada). A expansão do crédito alimentou fusões, aquisições, aberturas e tomadas de capital, deu gás às Bolsas, baixou a percepção de risco e espraiou crédito para muito lugarejo. Por outro lado, parte do leão dessa festa ficou, bidu, com a finança. Por mais que se diga que BCs não estão salvando a banca mundial (e em parte estão), a megaoperação de socorro é a renovação de uma espécie de habeas corpus para o grande financista: criem megacorporações financeiras cada vez mais complexas, aloquem muito capital sem cuidado com o risco e a eficiência que não haverá problema se o problema for muito grande. Alguns bancos quebraram, alguns financistas perderam o emprego? E daí? Os anos passados de locupletação e bonança terão compensado a eventual falência. O que as análises padrão da crise ignoram é que o tumulto deriva de algo que o mercadismo não admite: que a alocação sempre eficiente de capital pelo mercado é mito, que o grande capital tem carta-branca para malbaratar os benefícios do mercado livre e, enfim, que não precisa pagar por isso nem pelo seguro e pelo socorro que recebem do público. Que instituições públicas centrais são capturadas pelo mercado. E que a conta do prejuízo é socializada.

vinit@uol.com.br



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