São Paulo, terça, 8 de setembro de 1998

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LUÍS NASSIF

O imbecil coletivo da economia

Conta um amigo que expôs sua família a uma terapia familiar, visando tratar dos problemas de um filho adolescente. Durante meses a psiquiatra insistiu na tese da "ausência de pai" como explicação para a crise. O adolescente negava que fosse esse o problema, dado que mantinha um relacionamento adequado com o pai, apesar deste ser pessoa muito ocupada na vida profissional. A psiquiatra insistia que o adolescente não podia se contentar com tão pouco, que precisava exigir mais do pai.
Durante meses, jogou filho contra pai, mulher contra marido e o pai contra ambos, em um processo que o imbecil coletivo da psiquiatria utiliza, de desmontagem de relações familiares para posterior remontagem -em torno do que o psiquiatra imbecil considera padrão de normalidade. Uma espécie de jogo "Brincando de Deus".
A vida familiar virou um inferno, cada vez mais insuportável, mas dentro de um processo muito bem fundamentado por citações variadas dos clássicos da psiquiatria -embora se tratasse de relações pessoais, não de distúrbios de comportamento.
Até que os três desistiram e comunicaram à psiquiatra desvairada que não iriam mais ao "tratamento". A resposta foi: "agora que estávamos perto da cura, vocês desistem". Como perto da cura? A cada dia que passava mais iam se acentuando os sintomas de desagregação familiar, da crise do adolescente, da falta de comunicação entre os membros da família.
Mas a psiquiatra os convidava a continuar acreditando cegamente em um processo de piora gradativa, para alcançar a melhora em um ponto qualquer do futuro, sabe-se lá quando e de que maneira. Não havia ciência nem bom senso. Havia uma superstição fundada em citações científicas que nada tinham a ver com o quadro a ser trabalhado.
O amigo recusou, abandonou o charlatanismo, eliminou a intermediação que a charlatona havia imposto às suas relações com o filho e retomou as conversas familiares. O menino saiu da crise, que havia se prolongado além do necessário, por culpa exclusiva das manipulações da especialista.

Padrão geral
Quando o amigo me narrou esse processo, percebi que o processo mental que acomete os "especialistas" é idêntico, seja qual for a especialidade. Por "especialista" entenda-se a pessoa que se aferra aos princípios do manual, aplica cegamente um receituário pronto, sem se incomodar com a análise da realidade ou em submeter suas conclusões a princípios básicos de bom senso -um processo mental que, em outros campos do conhecimento, tem sido exemplarmente avacalhado por Olavo de Carvalho em seu "Imbecil Coletivo".
Tome-se o caso da estratégia cambial e monetária adotada nos últimos anos. O princípio básico era o de estabelecer uma ligação com os mercados internacionais, por meio da criação de facilidades ao capital especulativo, por meio de taxa de câmbio apreciada e juros elevados, por um período irresponsavelmente longo.
De julho de 1994 para cá, todos os indicadores macroeconômicos se deterioraram. Pior: o cenário inicial que presumivelmente justificava essa política (capital internacional abundante) não mais existe.
Todas as análises otimistas sobre a crise -repito, as otimistas- indicam a insustentabilidade da política econômica atual. Mesmo que o mercado voltasse a ser como antes, a trajetória da dívida pública (exposta aos juros dos últimos anos) e das contas correntes (exigindo US$ 20 bilhões adicionais, a cada ano, para se financiar, afora a rolagem da dívida acumulada) indicam um caminho insustentável.
Mesmo assim, alguns especialistas do mercado insistem que a política deve ser mantida, que as facilidades e a remuneração ao capital estrangeiro devem ser ampliadas, que não se pode tocar no câmbio nem em fórmulas de disciplinamento do capital especulativo. E para quê? Qual o cenário que se desenha, em que prazo e em que condições?
Aí, recorre-se a essa extrapolação de idealismo inútil. O problema não é a área externa, mas a fiscal. Para resolver a questão externa, "basta" obter 1,5% de superávit fiscal primário, manter a economia em recessão durante tantos anos, como se carências sociais, projetos de desenvolvimento, limitações políticas pertencessem ao plano da fantasia -e a realidade fosse unicamente o livre fluxo de dólares do mercado internacional. Pior, para não chegar a lugar algum.

Fé cega
É tão maluca essa fé cega na ortodoxia que, durante quatro anos, nenhum desses luminares se deu ao trabalho de questionar o porquê de se manter taxas de juros tão elevadas -mesmo em períodos em que as avaliações sobre a economia brasileira eram muito mais positivas do que agora.
O final dessa história é previsível. A realidade vai se impor sobre essas explicações. Nos últimos dias, já se aceita a obviedade que o problema mais premente não é a questão fiscal, mas o balanço de pagamentos.
Na antevéspera da crise, muda-se o rumo, não por livre opção, mas por falta de alternativas. Ai, paga-se a conta da imprudência e ainda se terá de ouvir do "especialista" a crítica: "se tivéssemos insistido mais um pouco, o país estaria salvo".
Durma-se com especialistas desses.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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