São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Rússia, China e Índia ensaiam novo eixo asiático

GILSON SCHWARTZ
ARTICULISTA DA FOLHA

A diplomacia de Bush insiste há um ano na divisão do mundo em duas partes. Numa, os aliados que defendem a democracia. Na outra, o terrorismo de Estado aliado a movimentos islâmicos fundamentalistas. Em tese, quem não está com Bush está contra a democracia e o Ocidente. Na prática, esse discurso vem perdendo aderência ao mundo real nos últimos meses.
Um exemplo articulado de movimentação geopolítica claramente desalinhada foi dado na semana passada pelo presidente russo, Vladimir Putin, que visitou a China e a Índia pregando a formação de um eixo asiático alinhavado pelas três grandes potências regionais. Elas compartilham vários interesses estratégicos, e o seu mínimo denominador comum pode ser o sonho de reconstruir um contraponto global ao poder dos EUA.
O ponto mais imediato de convergência, no entanto, é de ordem doméstica. Rússia (na Tchetchênia), China (em sua fronteira noroeste) e Índia (norte, contra o Paquistão) enfrentam movimentos islâmicos cada vez mais ativos, que se desdobram em redes e recorrem com intensidade crescente a ataques terroristas. Os ataques de 11 de setembro, ao indicarem os EUA como inimigo maior, servem bem ao propósito de encontrar um inimigo forte e distante o suficiente para, ao menos em tese, unir todas as correntes islâmicas que atuam no Oriente.
Os governos da Rússia, China e Índia têm muito mais a temer, de modo mais imediato e cotidiano, a julgar pela popularidade crescente das tendências islâmicas rebeldes. Na prática, o terror islâmico talvez pareça igualmente ameaçador tanto para os norte-americanos quanto para os asiáticos, mas a luta contra o terrorismo não é suficiente para unir todos esses governos sob o comando dos EUA.
A questão econômica subjacente à impossibilidade de uma frente única contra o terror islâmico é o controle das fontes de energia do planeta. Os EUA têm interesse estratégico na geopolítica da energia planetária.
Rússia, China e Índia, potências nucleares e atualmente os únicos países capazes de liderar projetos de industrialização acelerada com um mínimo de dependência financeira externa, precisam de muita energia (petróleo e gás) para crescer.
Crescimento que, se não acontecer a taxas altas por longos períodos, colocará centenas de milhões de indivíduos numa situação de pobreza que é solo fértil para a propaganda fundamentalista. Propaganda que é financiada por países como a Arábia Saudita e o Iraque, em que a matéria-prima petróleo é tão abundante quanto a fé no Islã.
Não é por acaso que, além dos projetos militares conjuntos, Rússia, China e Índia discutem novas formas de colaboração no campo energético e nuclear. Esses líderes asiáticos precisam construir um contraponto nos campos militar, econômico e energético à promessa norte-americana de desempenhar o papel de árbitro dos principais conflitos internacionais.
O desempenho cada vez mais precário da economia norte-americana torna a articulação de um pacto asiático ainda mais premente para essas lideranças regionais. Sem o dinheiro fácil antes oferecido pelos países centrais aos "mercados emergentes", a busca de uma alternativa geopolítica torna-se uma questão de sobrevivência.
As ameaças fundamentalistas e a necessidade de crescer para conter as angústias de populações asiáticas gigantes são fatores imediatos que tornam inverossímil a pretensão dos EUA de se tornar o guardião da civilização contra os impérios do mal.




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