São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

As contradições da hegemonia americana

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A economia norte-americana, por sua dimensão continental, sempre teve uma relação complexa e assimétrica com a economia mundial. Os impactos do seu ciclo endógeno e da sua política econômica sempre foram contraditórios com o funcionamento do restante do sistema capitalista por causa do peso do seu próprio mercado interno. Ao contrário da Inglaterra, antigo centro cíclico principal, o novo centro ainda é relativamente fechado tanto ao comércio como às finanças internacionais.
Na condição de grande país vencedor da Segunda Guerra Mundial, os EUA tornaram-se rapidamente a potência hegemônica do sistema capitalista. O seu poderio financeiro e militar, além de prestígio moral, permitiu comandar a organização de todas as agências multilaterais, inclusive um sistema monetário internacional baseado na própria moeda. A hegemonia foi considerada benigna tanto para o processo de descolonização como para os ex-adversários na guerra, Alemanha e Japão.
Na década de 70, surgiram os primeiros sintomas de uma possível perda da hegemonia norte-americana. A derrota no Vietnã, a ruptura do padrão dólar-ouro e a ameaça concorrencial ao "made in America" provocaram um sentimento de insegurança e de perda da auto-estima que acabou enterrando o sonho da "grande sociedade". A retomada dura da hegemonia americana deu-se no governo Reagan com a diplomacia do dólar forte e das armas. Desde então, vem ocorrendo uma convergência entre a violência da geopolítica e a violência financeira no sistema internacional, que já provocou várias crises tanto no centro como na periferia do sistema.
A violência da geopolítica não reside somente no papel de gendarme da "ordem mundial", substituto da violência dos anteriores impérios coloniais. Apóia-se na idéia de que não existe nem deve existir, num futuro visível, nenhuma potência à altura dos EUA e de que o mundo multipolar das grandes potências terminou. O fim da URSS e a nova doutrina de segurança americana geraram uma nova "ordem unipolar", que pode ser reorganizada periodicamente ao sabor dos interesses, da ideologia e até das idiossincrasias de um novo poder imperial republicano. Este dispensa o modo de exploração e dominação colonial, mas pode invocar o direito à intervenção unilateral, não sujeito a regras gerais de Direito Internacional moderno nem a tratados de paz. Essa é a natureza especial da Pax Americana, que não é comparável com a da Pax Britânica.
A violência financeira, apesar de ligada às iniciativas unilaterais do Fed adotadas nas duas últimas décadas -a chamada diplomacia do "dólar flexível"-, ficou mais abrangente com a desregulação dos mercados de crédito e de capitais que foi levada a extremos na década de 90. A supremacia das finanças globalizadas não afeta apenas a periferia, provoca também movimentos bruscos de valorização e de desvalorização do capital financeiro que terminam atingindo o próprio centro do sistema num nível muito mais aterrador do que o da análise constante no livro "Poder e Dinheiro" (M.C.Tavares e J.L.Fiori, 1997).
A liberalização financeira, imposta pelas políticas de Washington, foi particularmente desastrosa para os países da periferia do sistema. As crises latino-americanas e do Leste Europeu na década de 80 e novamente as latino-americanas, a russa e a dos países asiáticos na década de 90 dão provas da sua violência disruptiva. No início do século 21, o "blow back" das finanças globalizadas e desreguladas voltou a atingir os próprios EUA, com uma grave crise financeira interna que parece ser mais grave e prolongada do que as verificadas no início das duas décadas anteriores. As anteriores, embora se generalizassem a todo o sistema mundial, permitiram uma rápida recuperação do centro principal.
A massa de endividamento interno e externo da economia norte-americana funcionou, desde a década de 80, como uma máquina de sucção e de atração de capitais na expansão (a economia turbinada), mas também como um mecanismo de destruição de capital financeiro na reversão dos ciclos de valorização sem precedentes na história do capitalismo. A desvalorização da riqueza financeira entre 2000 e 2002 foi muito maior em termos absolutos e relativos ao PIB norte-americano do que a ocorrida na crise de 30. Não foi, porém, precedida por um crash. Wall Street fechou com o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. A reação do banco central norte-americano foi pronta e eficaz, injetando liquidez nos bancos nas semanas seguintes. A atitude defensiva com resposta imediata da política monetária e fiscal ajudou a afastar o perigo iminente de uma crise financeira generalizada no centro do sistema.
A violência financeira foi temporariamente afastada. A violência geopolítica de uma nova guerra no Médio Oriente poderá afastar os perigos da recessão e da deflação na economia central? As metamorfoses do capital e da guerra, bem como o medo e a insegurança generalizados, não são compatíveis com o diagnóstico e as soluções keynesianas que o próprio Fed autoriza. Parecem-se mais com as contradições e crises sucessivamente mais graves do capitalismo internacional desregulado enunciadas por Marx.
Quaisquer que sejam os desdobramentos da crise atual, os dias da "globalização benigna" sob a hegemonia norte-americana parecem definitivamente encerrados. Estamos presenciando uma degenerescência da "ordem mundial global" sobre cuja "reforma" só o próprio centro imperial poderá tomar a iniciativa. Entretanto todos os demais países estão na defensiva e na luta pela sobrevivência dos seus povos.


Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares

E-mail - mctavares@cdsid.com.br



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