São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um novo serviço público

RUBENS RICUPERO

Encorajado pelo editorial que a Folha publicou em 2 de janeiro sob esse título, peço vênia para insistir: cabe exclusivamente ao sistema político e à inflação a responsabilidade pelo desmantelamento do que um dia foi, segundo Hélio Jaguaribe, se não o melhor, um dos melhores setores públicos do Terceiro Mundo.
O aviltamento de salários e verbas para modernizar as operações, consequência da inflação crônica, tornou impossível manter o padrão de qualidade de PhDs treinados nos EUA da Embrapa, do Ipea e até de experiências mais recentes como a carreira do Tesouro, para cuja criação muito contribuiu o novo presidente do Banco do Brasil, Andrea Calabi.
O efeito foi ainda mais devastador na desmoralização destrutiva que afetou os serviços educacionais, sobretudo de 1º e 2º graus e de saúde dos Estados. Quem se lembra da qualidade dos ginásios estaduais Caetano de Campos ou Roosevelt, em São Paulo, sabe que, nesse campo, caminhamos para trás.
Mas, se é óbvia a importância de salários dignos e estáveis, talvez não seja tão evidente o papel mais essencial desempenhado por outro fator: o profissionalismo. O "civil servide" inglês, o serviço administrativo francês e o de todos os países que modernizaram sua administração a partir do século 19 se inspiraram nesse princípio, que pôs fim à prática do Antigo Regime, quando ainda era comum comprar do rei um cargo público para ser explorado em proveito próprio.
O Brasil e os outros países de colonização ibérica são herdeiros desse "patrimonialismo", já denunciado há 50 anos por Raymundo Faoro em "Os Donos do Poder". É o sistema no qual os dinheiros e os cargos públicos são apropriados por particulares para aumentar-lhes a fortuna e o poder, em que não existe linha divisória nítida entre a "res publica", o patrimônio público e a esfera do privado.
A Nova República perdeu, em 1985, ocasião única de mudar o sistema, ao reinaugurar o espetáculo desprimoroso do leilão político de cargos governamentais e agravou o erro, ao desperdiçar de novo, na Constituição de 1988, a oportunidade de trazer a administração pública brasileira para a era da modernidade. Bastaria para isso firmar em pedra e cal o princípio do profissionalismo, o oposto ao empreguismo. Trata-se simplesmente de reservar a função de administrador público a profissionais selecionados em exame competitivo, treinados adequadamente e promovidos dentro de carreiras organizadas na base do mérito e das realizações, isto é, de sistema objetivo de sanções e recompensas.
Diferentemente do que ocorre com os salários, isso não depende de recursos e nada tem a ver com a crise orçamentária atual. Requer apenas a vontade política do sistema como um todo, Executivo, Congresso, partidos, para estabelecer que a quase totalidade dos cargos de DAS deve ser preenchida por funcionários de carreira e segundo critérios estritos de interesse público. Paralelamente, em cada ministério, se reservaria um pequeno número de postos de conteúdo mais político do que administrativo, destinados a refletir a preferência política expressa pelo eleitorado.
O Itamaraty é o que é, padrão universal de qualidade, devido à aplicação desse princípio. Desde 1945, com a criação do Instituto Rio Branco, já há 53 anos portanto, não se entra para a diplomacia pela "janela" (sugestivamente, as últimas nomeações políticas foram feitas por Linhares, um presidente do Supremo, após a queda de Getúlio). Além disso, pela lei, o ministro do Exterior tem de compor seu gabinete e escolher até seu porta-voz dentre os integrantes da carreira.
Se você achar que é exclusivismo ou corporativismo, responda depressa: por que o PMDB ou o PFL não devem poder nomear o general de Manaus, o almirante de Fortaleza ou o brigadeiro do Rio e podem, ao contrário, pretender nomear o fiscal do Ibama no interior do Acre ou o diretor da alfândega do aeroporto de Guarulhos? Os dois exemplos não são fruto da fantasia, mas tirados da experiência de minha passagem pelos ministérios do Meio Ambiente e da Fazenda, onde tive de enfrentar pressões políticas desse nível de aberração, clara e insofismavelmente ligadas a esquemas de corrupção.
Dizer que a profissionalização é o sonho para a França, não para nós, é entregar os pontos diante de realidade que temos de mudar. Afinal foi possível no Itamaraty, no Banco do Brasil, no Banco Central, por que não no conjunto do serviço público? É preciso não esquecer que, em passado não muito distante, era até possível, com dinheiro ou influência, ganhar patente de major ou coronel da Guarda Nacional e isso também acabou.
Em estudo publicado no décimo aniversário da Constituição de 1946, Seabra Fagundes mostrava que, entre a Independência e aquela data, as nossas primeiras constituições pouco tinham inovado em matéria de estrutura do Executivo, mantendo mais ou menos os mesmos ministérios. Desde então, porém, fomos assaltados por verdadeira febre de reformas administrativas, que se sucedem umas às outras, sem tempo suficiente para amadurecer, testar e consolidar as inovações, logo desfeitas para dar lugar a alguma outra coisa igualmente precária. Aqui também seria preciso um pouco de equilíbrio: nem o imobilismo, a estagnação do passado, nem a recente tendência a uma espécie de "revolução permanente" no serviço público, uma frenética dança de São Vito em que não podemos parar para respirar ou trabalhar.
Vale para o serviço público o que vale para as constituições: devem ser feitas para durar e perdurar. Se não quisermos cair na situação ironizada por Afonso Arinos, que dizia que as constituições brasileiras estavam em via de mudar com mais frequência do que a lista telefônica. Em breve, acrescentava, acabariam por virar publicação periódica da qual poderíamos tomar assinatura...


Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.



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