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OPINIÃO ECONÔMICA
Um novo serviço público
RUBENS RICUPERO
Encorajado pelo editorial que
a Folha publicou em 2 de janeiro sob esse título, peço vênia para insistir: cabe exclusivamente
ao sistema político e à inflação a
responsabilidade pelo desmantelamento do que um dia foi, segundo Hélio Jaguaribe, se não o
melhor, um dos melhores setores
públicos do Terceiro Mundo.
O aviltamento de salários e
verbas para modernizar as operações, consequência da inflação crônica, tornou impossível
manter o padrão de qualidade
de PhDs treinados nos EUA da
Embrapa, do Ipea e até de experiências mais recentes como a
carreira do Tesouro, para cuja
criação muito contribuiu o novo
presidente do Banco do Brasil,
Andrea Calabi.
O efeito foi ainda mais devastador na desmoralização destrutiva que afetou os serviços
educacionais, sobretudo de 1º e
2º graus e de saúde dos Estados.
Quem se lembra da qualidade
dos ginásios estaduais Caetano
de Campos ou Roosevelt, em São
Paulo, sabe que, nesse campo,
caminhamos para trás.
Mas, se é óbvia a importância
de salários dignos e estáveis, talvez não seja tão evidente o papel
mais essencial desempenhado
por outro fator: o profissionalismo. O "civil servide" inglês, o
serviço administrativo francês e
o de todos os países que modernizaram sua administração a
partir do século 19 se inspiraram
nesse princípio, que pôs fim à
prática do Antigo Regime,
quando ainda era comum comprar do rei um cargo público para ser explorado em proveito
próprio.
O Brasil e os outros países de
colonização ibérica são herdeiros desse "patrimonialismo", já
denunciado há 50 anos por Raymundo Faoro em "Os Donos do
Poder". É o sistema no qual os
dinheiros e os cargos públicos
são apropriados por particulares para aumentar-lhes a fortuna e o poder, em que não existe
linha divisória nítida entre a
"res publica", o patrimônio público e a esfera do privado.
A Nova República perdeu, em
1985, ocasião única de mudar o
sistema, ao reinaugurar o espetáculo desprimoroso do leilão
político de cargos governamentais e agravou o erro, ao desperdiçar de novo, na Constituição
de 1988, a oportunidade de trazer a administração pública
brasileira para a era da modernidade. Bastaria para isso firmar em pedra e cal o princípio
do profissionalismo, o oposto ao
empreguismo. Trata-se simplesmente de reservar a função de
administrador público a profissionais selecionados em exame
competitivo, treinados adequadamente e promovidos dentro
de carreiras organizadas na base do mérito e das realizações,
isto é, de sistema objetivo de
sanções e recompensas.
Diferentemente do que ocorre
com os salários, isso não depende de recursos e nada tem a ver
com a crise orçamentária atual.
Requer apenas a vontade política do sistema como um todo,
Executivo, Congresso, partidos,
para estabelecer que a quase totalidade dos cargos de DAS deve
ser preenchida por funcionários
de carreira e segundo critérios
estritos de interesse público. Paralelamente, em cada ministério, se reservaria um pequeno
número de postos de conteúdo
mais político do que administrativo, destinados a refletir a
preferência política expressa pelo eleitorado.
O Itamaraty é o que é, padrão
universal de qualidade, devido
à aplicação desse princípio. Desde 1945, com a criação do Instituto Rio Branco, já há 53 anos
portanto, não se entra para a diplomacia pela "janela" (sugestivamente, as últimas nomeações
políticas foram feitas por Linhares, um presidente do Supremo,
após a queda de Getúlio). Além
disso, pela lei, o ministro do Exterior tem de compor seu gabinete e escolher até seu porta-voz
dentre os integrantes da carreira.
Se você achar que é exclusivismo ou corporativismo, responda depressa: por que o PMDB ou
o PFL não devem poder nomear
o general de Manaus, o almirante de Fortaleza ou o brigadeiro do Rio e podem, ao contrário, pretender nomear o fiscal do
Ibama no interior do Acre ou o
diretor da alfândega do aeroporto de Guarulhos? Os dois
exemplos não são fruto da fantasia, mas tirados da experiência de minha passagem pelos
ministérios do Meio Ambiente e
da Fazenda, onde tive de enfrentar pressões políticas desse
nível de aberração, clara e insofismavelmente ligadas a esquemas de corrupção.
Dizer que a profissionalização
é o sonho para a França, não para nós, é entregar os pontos
diante de realidade que temos
de mudar. Afinal foi possível no
Itamaraty, no Banco do Brasil,
no Banco Central, por que não
no conjunto do serviço público?
É preciso não esquecer que, em
passado não muito distante, era
até possível, com dinheiro ou influência, ganhar patente de major ou coronel da Guarda Nacional e isso também acabou.
Em estudo publicado no décimo aniversário da Constituição
de 1946, Seabra Fagundes mostrava que, entre a Independência e aquela data, as nossas primeiras constituições pouco tinham inovado em matéria de
estrutura do Executivo, mantendo mais ou menos os mesmos
ministérios. Desde então, porém, fomos assaltados por verdadeira febre de reformas administrativas, que se sucedem
umas às outras, sem tempo suficiente para amadurecer, testar e
consolidar as inovações, logo
desfeitas para dar lugar a alguma outra coisa igualmente precária. Aqui também seria preciso um pouco de equilíbrio: nem
o imobilismo, a estagnação do
passado, nem a recente tendência a uma espécie de "revolução
permanente" no serviço público,
uma frenética dança de São Vito em que não podemos parar
para respirar ou trabalhar.
Vale para o serviço público o
que vale para as constituições:
devem ser feitas para durar e
perdurar. Se não quisermos cair
na situação ironizada por Afonso Arinos, que dizia que as constituições brasileiras estavam em
via de mudar com mais frequência do que a lista telefônica. Em
breve, acrescentava, acabariam
por virar publicação periódica
da qual poderíamos tomar assinatura...
Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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